António Dias, OBEGEF

Concordo Alice, e embora não esteja afastado da política ou a desvalorizar a minha cidadania, concluo que a irresponsabilidade dos políticos não cativa o exercício do direito de voto. E perante este cenário, não dá vontade de votar.

E sabes que mais Alice… a história vai continuar a repetir-se.

Na última crónica, um mês depois das Eleições Autárquicas, Alice refletiu sobre a abstenção. E eis que, três meses depois, voltamos às urnas!

Eleições Legislativas, para eleger os Deputados que irão constituir a Assembleia da República e patrocinar a formação do Governo. Um ato vital no sistema democrático, o momento de determinar as forças do poder legislativo e poder executivo.

Continuando alegremente o seu belo passeio pelo País das Maravilhas, Alice volta a encontrar-se com cartazes espalhados um pouco por todas as rotundas. A sua curiosidade desperta, estamos a poucos dias do ato eleitoral.

-Como será a abstenção? – pergunta Alice. Dada a importância, estas eleições devem ser muito concorridas, pensou.

-Agora não Alice, mas já foram. Nas primeiras eleições legislativas, em 1975, a abstenção foi de 8,5%. Desde então, a tendência foi de aumento, registando-se em 2019 o máximo de 51,4%.

-Tanto?! Mais de metade dos eleitores não participa. Não entendo! Porque não votam as pessoas? Porque desvalorizam o seu direito e dever cívico? Estão desligadas da política? Não se reconhecem nos candidatos? Estão os políticos descredibilizados?

-Talvez seja um pouco de tudo. Vejamos a situação atual.

Em breve vamos a eleições porque o governo PS que tomou posse em 2019, após ter governado durante 6 anos em minoria, não conseguiu apresentar um Orçamento de Estado que contasse com o apoio parlamentar que vinha a ser habitual, o apoio do BE e da CDU. A solução governativa de esquerda, existente até então, ruiu, mas não com muito o estrondo (até já tinha sido previsto, ou melhor, condicionado pelo Sr. Presidente da República).

Os partidos acusam-se mutuamente e todos são responsáveis, ou na perspetiva do “povo”, todos são irresponsáveis. E perante este cenário, não dá vontade de votar.

Bem, só por aqui já dá para ver que a intriga é apetitosa. Mas continuemos…, caí o governo, convocam-se eleições, gera-se o caos e assiste-se a uma selvageria intelectual:

-Os partidos de esquerda mais próximos do governo ficam à deriva, a discussão é… quem vai ser responsabilizado pela queda do governo, quem tem mais a perder? Os culpados não fomos nós, foram os outros!

-Os partidos de direita entram em convulsão, a discussão é… não esperávamos isto tão cedo, quem vai ser candidato? Eu quero, é a minha vez!

-Ao que junta, pela direita e pela esquerda, partidos “mais ou menos” emergentes com legitimas ambições. E confusões!

O espetáculo é pouco dignificante e a irresponsabilidade de diversos personagens políticos torna-se visível e gritante. E perante este cenário, não dá vontade de votar.

Mas, em pouco tempo, todos se alinham, tudo se resolve, tudo está decidido e a decorrer. Temos candidatos, propostas alternativas, uma série de debates televisivos e visitas pelo país. A campanha está em curso e o argumento, complexo, garante todos os ingredientes de um bom filme. Batem-se recordes de visionamento dos debates, as pessoas estão interessadas, mas falta a novidade, falta o “suspense”. Os líderes candidatos são os mesmos que em eleições anteriores, pouco ou nada de novo é acrescentado aos programas eleitorais, está tudo muito semelhante a 2019. Até o orçamento, em caso de vitória do PS, vai ser igual ao que não teve, a apenas 4 meses, apoio parlamentar. E perante este cenário, não dá vontade de votar.

-Então a abstenção vai subir? – questiona a Alice.

-Julgo que sim, ainda que não se vá afastar muito da verificada em 2019, sendo que desta vez a pandemia pode ser usada como justificação. Porém, no sentido contrário, também existem argumentos. Por exemplo, sendo mais numerosas as forças políticas candidatas e as já representadas na Assembleia de República, maior é a diversidade populacional representada, o que só por si poderia justificar uma inversão na taxa de abstenção.

E sabes Alice, nos debates a que assisti, momento em que todos os candidatos tentam convencer e alargar o seu leque de eleitores, não se falou da abstenção. Estão mais interessados em “roubar votos aos opositores”, do que “roubar votos à abstenção”. Os envolvidos no processo eleitoral pouco refletem sobre o assunto, ninguém é responsável… muito menos os políticos. E perante este cenário, não dá vontade de votar.

Por outro lado, as sondagens indicam que as coisas vão ficar parecidas ao que eram, o PS ganha sem maioria, a esquerda ganha a maioria parlamentar, a direita não tem forma de governar. Parece que tudo fica mais ou menos na mesma. E perante este cenário, não dá vontade de votar.

-Democracia é complicada, não será fácil explicar o conceito à Rainha de Copas – diz Alice. E já agora, se ficar tudo na mesma, estas eleições são tão loucas que nem o Chapeleiro Louco conseguirá perceber.

-Concordo Alice, e embora não esteja afastado da política ou a desvalorizar a minha cidadania, concluo que a irresponsabilidade dos políticos não cativa o exercício do direito de voto. E perante este cenário, não dá vontade de votar.

E sabes que mais Alice… a história vai continuar a repetir-se.