José António Moreira, Expresso online (129 23/06/2021)

 

Num tempo em que todos berram e se dizem discriminados, o silêncio dos acamados e imobilizados tem de ser olhado como o grito genuíno da discriminação de que são vítimas

Antónia (nome fictício) perdeu o marido. De idade avançada e acamada há anos, entregou ao cuidado de um filho a prossecução do conjunto de procedimentos burocráticos e declarativos associados ao falecimento, como já antes lhe entregara a gestão das finanças do casal. Era necessário começar por abrir uma conta bancária, única forma de ela poder receber a pensão de sobrevivência.

Primeiro choque: na instituição bancária onde o casal tinha a sua conta conjunta, o desejo de abrir uma conta em nome do cônjuge sobrevivo esbarrou na intransigência (supostamente ditada pela Lei): a abertura é um ato presencial, pelo que a titular tem de vir em pessoa para assinar. O estado de saúde da mesma, a sua situação de acamada, não despoletou proposta de solução da parte da instituição. “E se eu trouxer uma procuração notarial com poderes para o ato?”, perguntou.

Segundo choque: em plena pandemia, conseguir levar o notário a casa, para lavrar presencialmente a vontade expressa pela doente, foi um feito. A procuração dava ao filho plenos poderes para participar e fechar todo o tipo de negócios, incluindo compra e venda de bens imóveis, abertura e movimentação de contas e valores bancários. “Esta procuração não serve …”, disseram-lhe com suavidade no banco, na visita seguinte. Não fazia menção expressa a que essa abertura e movimentação era no “Banco do Povo” (nome fictício).

Terceiro choque: perseverou, voltou a chamar o notário a casa, fez-se nova procuração, expressando que era no “Banco do Povo”. Voltou lá. “Como a mãe não pode assinar [visível pela impressão digital aposta na procuração], tem de atualizar o bilhete de identidade [vitalício] para lhe podermos abrir a conta”. Em momentos como este, desaparece a ponderação, a racionalidade, a consciência de que o interlocutor que tem à sua frente é apenas uma peça da engrenagem, também, em parte, vítima da teia normativa e regulamentar existente. O tom de voz altera-se, os argumentos deixam de ser pensados e polidos. Às vezes, com resultados positivos, como foi o caso. Mas … há sempre um “mas”. “Não lhe vamos poder fornecer o acesso ao serviço de ‘homebanking’, pois é pessoal e intransmissível, e como a mãe não tem condições para o utilizar …”. Aqui não houve argumento, mais ou menos áspero, que permitisse ultrapassar a intransigência. A solução conseguida era mínima, mas resolvia o problema.

Saiu, com um muito obrigado ao seu interlocutor, mas sem conseguir perceber a racionalidade da norma que nega a um movimentador da conta o referido acesso, mas lhe fornece um cartão de débito para o efeito.

Esta situação ficcionada tem base real. Prolongou-se por cerca de três meses, muitas horas de trabalho perdidas, demasiados euros gastos, doses enormes de tensão emocional. Não há um culpado a apontar. Há múltiplos, cada um contribuindo com a sua pitada para a rigidez do sistema, para a intrincada teia de pequenos procedimentos bloqueadores. O legislador, que ao procurar criar proteção contra a fraude fiscal e a lavagem de dinheiro, torna difícil a vida dos cidadãos cumpridores; as instituições financeiras, que à rigidez da Lei juntam a sua própria dose, tornando a teia inflexível para os pequenos atos de que um vulgar cidadão necessita para se manter socialmente vivo, quiçá não tão inflexível para os atos que verdadeiramente importaria condicionar, mas que são caucionados com a aposição de delicadas assinaturas feitas presencialmente por pessoas elegantes e sorridentes; os funcionários das instituições, que se procuram defender de eventuais processos disciplinares supervenientes, adicionando à rigidez já existente a inflexibilidade que os impede de compreender e lidar com situações não correntes, mas inofensivas; por último, os cidadãos, os clientes das instituições, que percorrem este tipo de calvário sem protestarem, para que as situações não bloqueiem definitivamente, e que, agradecendo, à saída, fecham a porta delicadamente.

Em tempos não muito distantes dotaram-se os passeios e edifícios com rampas de acesso para facilitar a inclusão social das pessoas com dificuldades motoras. No entanto, nada de similar foi proporcionado, em termos de apoio no acesso aos serviços, aos cidadãos que, por doença ou velhice, perderam totalmente a mobilidade. A sociedade parece tê-los esquecido. Sem necessidade. Seria tão fácil dar pequenos passos decisivos no sentido da respetiva inclusão. Até poderiam surgir, autonomamente, no seio das organizações. Por exemplo, oferecendo a prestação do serviço ao domicílio, mesmo que a troco da cobrança de uma taxa. Se o cliente não pode ir ao banco, por que razão não há de ir o banco a sua casa?

Num tempo em que todos berram e se dizem discriminados, o silêncio dos acamados e imobilizados tem de ser olhado como o grito genuíno da discriminação de que são vítimas, o grito de cidadãos sem forças nem palco para se manifestarem.