Marcus Braga, Jornal i
"É possível estabelecer-se uma certa taxonomia da corrupção na política da saúde"
A crise sanitária devido a pandemia do Novo Coronavírus (SARS-CoV-2) mexeu com a percepção de risco dos cidadãos de todos os países, atingidos ou não, emergindo desse cenário a valorização da saúde, os seus profissionais e as organizações e mercados correlacionados. A atuação dos governos e as suas políticas sobre o tema foram postos à prova num contexto de grande incerteza e de mitigação de diversos riscos, e um deles merece destaque no presente artigo: a corrupção.
A corrupção, entendida como um grande risco para as políticas públicas, pode ser definida, de modo geral e um tanto minimalista, como um abuso de poder por parte de agentes públicos, que quebra regras estabelecidas, desviando ações de suas finalidades para atender ao interesse pessoal desses agentes e de outros que com eles se locupletam. Uma definição que abarca um conjunto de práticas, como a propina, o nepotismo, a fraude, o peculato, o favorecimento, e que tem seu desenho adaptado as características de cada política pública, explorando suas fragilidades.
A política de Saúde, nosso objeto de discussão, no que se refere à corrupção, se insere em um contexto de movimentação de grandes somas de recursos; com a participação dos governos de forma intensa no provimento e na regulação; alto impacto das inovações tecnológicas nos custos e no acesso a serviços; fortes categorias profissionais autônomas e com relações complexas entre si; transversalidade com outras políticas públicas; assimetria de informação elevada entre usuários e provedores; customização e imprevisibilidade relevante nos processos; além de implicações éticas nas decisões e mercados complexos e com a presença de oligopólios.
Por esse perfil, é possível estabelecer-se uma certa taxonomia da corrupção na política de saúde, para fins didáticos, mas também para melhor compreender seus efeitos e que tipos de salvaguardas são possíveis de serem adotadas. Tendo como fonte algumas publicações internacionais, como: “La lucha contra la corrupción en el sector de la salud:métodos, herramientas y buenas prácticas” (PNUD/2011) e “Study on Corruption in the Healthcare Sector” da União Europeia (2013), além da observação livre de periódicos, é possível tecerem-se considerações sobre o fenómeno da corrupção na Saúde, estabelecido em três níveis.
Cabe destacar que a corrupção não é um fato isolado da política de Saúde, sua trajetória e arranjos adotados em cada país, em especial no que se refere as fragilidades no planeamento da política, no seu arcabouço legal, bem como no grau de profissionalização das burocracias responsáveis pela sua implementação, e as estruturas de accountability desses países, servindo-se a taxonomia aqui proposta como uma visão ampla da questão, que não pode desprezar as peculiaridades de cada país e seus processos históricos.
Um nível macro, que envolve a política num aspecto estratégico, e que pelas características da Saúde, pode se revelar emações corruptas nas questões regulatórias, nas escolhas orçamentárias, na construção de normativos abstratos que motivam a autorização de uso de medicamentos e equipamentos, bem como nas escolhas políticas que envolvam modelos de gestão e padrões, e que favoreçam grupos privados específicos. Soma-se ainda a concessão pelos governos de isenções e subsídios, e questões relacionadas a conflitos de interesse, a chamada “porta giratória”, que são possíveis no ecossistema da corrupção nesse nível.
As ações de corrupção nessa esfera têm como impacto investimento público em ações que gerem pouco benefício para a Saúde; favorecimento de atores, gerando distorções nos mercados; liberação de fármacos que podem trazer prejuízos à população; lacunas orçamentárias que geram dano a continuidade do acesso à Saúde; esvaziamento da ação dos órgãos de defesa dos direitos do cidadão; além de tornar a política pública refém de grupos de interesse.
No reino das salvaguardas, pode-se sugerir que os processos da política de Saúde tenham mais transparência, uma maior governança regulatória com a profissionalização dos órgãos e a criação de instâncias supervisoras; fomento para a criação de entidades de avaliação e controle social especializadas e autônomas;e ainda, a criação de espaços de debate público de maior densidade sobre as questões da Saúde, inclusive nos parlamentos.
É possível se falar de um nível macro, restrito a grandes unidades hospitalares e redes locais, em uma linha mais executiva. Neste caso, a corrupção encontra espaço nas vultosas contratações de serviços permanentes relacionados ao funcionamento dos aparelhos públicos;obras de reforma e construção de unidades hospitalares;grandes compras de insumos e de equipamentos; concursos de admissão de pessoal; e convênios com redes particulares subsidiadas. Processos derivados do grande volume de transações típicos da política de saúde, envolvendo orçamentos, vultosos grupos de funcionários, beneficiários e prestadores de serviços. Na Saúde, tudo é grande e em quantidade.
O Impacto da corrupção nesse nível está na oneração da política através do aumento da faturação, bem como da quebra de qualidade da oferta dos serviços, pelo direcionamento para empresas e servidores não qualificados, complementado pela compra de itens de baixa qualidade, gerando equipamentos quebrados pela falta de cobertura de manutenção, em um cenário que além de tornar a Saúde mais cara, reduz ou atrasa os atendimentos, em especial os de alta complexidade.
O receituário na perspetiva de promoção da transparência que alimenta o controle social; na existência de auditoria profissional e especializada; associado a uma estrutura de governança participativa, tem bons efeitos nesse nível. Cabe destacar também a importância de mecanismos transversais, como a padronização de itens e serviços, estabelecimento de preços máximos, e o uso de sistemas informatizados para a gestão e monitorização.
Por fim, um nível micro da corrupção da Saúde vincula-se nos atos quotidianos dos profissionais e a interação com os usuários. Nesse sentido, destacam-se situações de pagamentos extras para a realização de serviços que deveriam ser oferecidos gratuitamente; fraude no faturamento dos serviços prestados; venda de vagas para burlar filas de cirurgias; desvio de medicamentos, insumos e equipamentos para o mercado paralelo; absenteísmo de profissionais; e nepotismo.
Essas ações corruptas de base também afetam os usuários, pois oneram, retardam ou limitam o acesso ao atendimento, geram o cancelamento de cirurgias e o atraso do atendimento de pacientes com quadro de urgência, e ainda,rompemas escolhas por critérios técnicos, privilegiando as relações pessoais ou aquele que oferecer mais vantagens.
As salvaguardas na base são mais complexas, mas o uso de sistemas informatizados de controle de estoque, de presença e de atendimento são bem efetivos. A adoção de políticas de compliance, a promoção da transparência dos processos em relação aos usuários,e ainda, uma auditoria interna atuante, aliada ao monitoramento de indicadores dos principais pontos de controle, são boas medidas nesse sentido.
O artigo, ao dividir a corrupção em níveis, permite uma visão analítica desse fenômeno, que possibilita a construção de mecanismos que podem reduzir essas ocorrências, sem onerar muito a gestão da política. A customização da corrupção em relação as características da política pública é um bom caminho para desenhar bons controles, e que dialoguem com a lógica daquela função pública, de forma mais alinhada.
Ao crescer a relevância da Saúde como tema, a sua gestão vem forçosamente para a pauta, em especial na academia, nos gabinetes, na imprensa ou nos parlamentos. E nesse sentido, a discussão sobre um dos fatores que afeta essas entregas, a corrupção, torna-se igualmente importante. E para isso, não cabe improviso, entendendo-se que é preciso se debruçar nos aspectos específicos desse tipo de corrupção, para fazer frente a esta de forma efetiva, com bom diagnóstico que conduza a razoáveis receituários.