Rute Serra, Expresso online (111 17/02/2021)
Sem aviso prévio, exigiu-se à Humanidade que desempenhasse o distópico papel das suas vidas. Nesta crise global que a pandemia instigou, somos todos aleatoriamente protagonistas, actores de segunda linha ou figurantes. Porém todos - arriscaria dizer, sem excepção - sentimos os devastadores impactos com que a doença covid-19 nos brindou
O World Economic Forum convoca a necessidade de fazermos The Great Reset, ou seja, da aldeia global se redefinir sob o ponto de vista económico, numa perspectiva de progresso mútuo e sustentável. Não tardou que os-que-vêm-filmes-a-mais, também designados “conspiracionistas”, inspirados no baizuo – epíteto depreciativo chinês relativo à “superioridade moral das elites ocidentais” – decidissem denunciar o prenúncio de uma nova ordem mundial castradora e subversiva, que rapidamente nos transformará em autómatos.
Aquilo que já sabemos (e sentimos na pele) é que esta doença atrasou o passo das nossas relações individuais e colectivas. Disrupção nas interacções sociais, alargamento da exclusão digital, mudanças abruptas no comportamento dos mercados e dos consumidores, óbices à educação e ao emprego, desafios aos regimes democráticos, tensões geopolíticas, todas estas circunstâncias estão a ser percepcionadas. Estas e outras conclusões podem ser consultadas no World Economic Forum Global Risks Report 2021, que apresenta as doenças infecciosas no topo dos riscos que impactarão a sociedade em geral nos próximos anos. Nas dez maiores ameaças identificadas, cinco estão relacionadas com adversidades de cariz ambiental.
Neste estado da arte, importantes desafios se colocam ao funcionamento das organizações, públicas e privadas. Empregados, funcionários, empresários e gestores públicos esforçam-se diariamente para desempenharem remotamente as suas funções, preocupados com a saúde e a segurança, mas também com a sobrevivência e resiliência das organizações. A tentação de alijar procedimentos de controlo e de sistemas de governança ajustando-os a um novo ambiente de cultura organizacional, deve ser evitada. Isto porque os factores de risco, nesta nova realidade, que só por si já incrementa o clima de instabilidade, aumentam significativamente. As incertezas financeiras, pessoais e organizacionais a par de uma menor incidência no controlo do risco, fomentam o aparecimento de fraude, na medida em que exortam os três ângulos do conhecido Triângulo da Fraude – pressão, oportunidade e a racionalização.
A ameaça destes tempos pandémicos no contexto laboral paira sobre uma realidade de luta pela sobrevivência. A percepção de que não, apesar de tudo, os meios não justificam os fins, deve ser elevado, hoje mais do que nunca, a axioma. Mantermo-nos accountable no olho deste furacão é um teste à resiliência que se nos exige que ultrapassemos.
Para construir e sustentar uma agenda de integridade nas nossas organizações importa asseverarmos que a comunicação sobre padrões éticos é clara, objectiva e adequada; que a garantia de uma liderança coesa e consistente existe; que procede a manutenção do esforço, apesar da perda de empregos, em manter a segregação de funções e o reforço da supervisão; que os mecanismos de controlo ético previamente definidos se mantêm operacionais e efectivos; que existe conformidade na gestão financeira; que os dilemas éticos comunicados são eficazmente resolvidos. Convirá ainda que as auditorias internas, ou compliance committees, de modo colaborativo com as instituições de auditoria externa desenvolvam um novo paradigma de actuação, que preste especial atenção às áreas onde exista incremento de risco operacional ou organizacional.
Isto vai acabar. Esta crise, como aconteceu com todas as crises antes desta, vai acabar. E é fundamental que as organizações, para lá desta cortina limosa, se possam continuar a apresentar como íntegras. Será essa a exigência de cidadãos que viveram esta provação.