José António Moreira, Expresso online (108 26/01/2021)

 

 

However, if I checked the assumptions, they were almost always wrong.”
Jonah, in Goldratt e Cox (1993)

Com o futebol em tom menor, jogado longe da turba, os casos dos jogos, continuando a existir, perderam a virulência habitual, enviando para segundo plano a plêiade de comentadores residentes nos diversos canais. Tomando esse lugar proeminente no “prime time” das estações televisivas surgiu um outro tipo de comentadores, os virologistas, os epidemiologistas, os estatísticos “tout court”, os fazedores de previsões sobre a evolução pandémica, em geral. Profissionais que, por detrás da respetiva “expertise”, são, na maior parte dos casos, vítimas da respetiva inexperiência frente às câmaras, e também de um certo deslumbramento pessoal pela oportunidade de sobressaírem da multidão anónima dos seus pares. Vítimas, igualmente, dos “pivots”, que lhes procuram extrair opiniões bombásticas, daquelas repetidas “ad nauseum” no rodapé dos blocos noticiosos. A análise dos números de mortos e internados, de modo particular as previsões, viraram o assunto do momento, num contexto em que se perde, definitivamente, a sensibilidade para o facto de que por detrás desses números estarem (ou virem a estar) concidadãos em sofrimento, vítimas diretas ou indiretas do vírus. Para não falar das respetivas famílias …

Há poucos dias, no Jornal da Noite da RTP1, o “pivot” de serviço ladeou-se de dois desses peritos. Um apresentava quadros e estatísticas das vítimas do dia; o outro, propunha previsões de infetados e mortos para as próximas semanas. Era este, de modo particular, o que o jornalista pressionava, numa abordagem do tipo “X milhares de mortos nas próximas semanas?! E se acontecer isto? E se acontecer aquilo?” Com um (chocante) sorriso na face, potencialmente atribuível ao deslumbramento dos minutos de fama que lhe estavam a ser concedidos, o perito respondia a todas as perguntas com uma certeza não compaginável com o que são, na essência, previsões, qualquer que seja a respetiva natureza. “Sim, se isso acontecer então o número de mortos subirá para y milhares, caso contrário será de y+z milhares”.

A determinada altura, para mim, espetador, o irrazoável e defraudador ato de se apresentarem previsões como se de certezas se tratasse, fez com que os números deixassem de ser informação, passando apenas a valer pela musicalidade das palavras, complementando o colorido do cenário. O tema do momento, o desastre pandémico que se vive, deixara de existir. Apenas som e cor. “E acha que a abertura concedida pelo Governo no Natal foi a causa de termos chegado à situação em que nos encontramos?”, o último esforço do “pivot” para encontrar o rodapé das próximas emissões noticiosas, já nem se percebia onde encaixava, o que é que o justificava.

Não tendo sido lançadas as perguntas que efetivamente poderiam ter ajudado a contextualizar os números e deixassem bem claro o que são previsões e respetiva fiabilidade, aqueles largos minutos de tempo de antena nunca foram parte de um efetivo serviço público noticioso. Por isso, aquele espaço televisivo, idêntico ao da generalidade dos restantes canais noticiosos, deve ter sido mais um contributo para a consolidação da (pelo menos aparente) insensibilidade dos cidadãos relativamente ao drama que atualmente se vive nos hospitais e em tantas famílias. Não foi, certamente, esse o propósito do jornalista/canal, mas terá sido esse o efeito.

Se se pretende sensibilizar os cidadãos para a extrema gravidade da situação – e tem de se conseguir tal sensibilização, custe o que custar, para que cada um seja parte da solução, não do problema – afigura-se contraindicado que se descarreguem “toneladas” de previsões catastróficas em cima deles. Não. Pegue-se numa situação real, a de alguém que deixou um familiar à entrada de uma urgência hospitalar, que durante dias esperou ansiosamente que o telefone tocasse e trouxesse uma mensagem de conforto sobre a evolução clínica favorável do doente, até ao dia em que a mensagem chegou, fora de horas, noite adentro, e trouxe o aperto de uma despedida que não teve lugar, de uma ilusão que caiu por terra, de um funeral sem velório, de um defunto que fez a sua última viagem envolto um saco de plástico.

Até porque a informação do Governo não tem tido a qualidade e foco minimamente necessários a engajar os cidadãos na cruzada que se tem de lutar, é acrescida a importância dos jornalistas e dos meios de comunicação social neste domínio. Mas que não se trate a situação pandémica do mesmo que se trata um jogo de futebol com casos. A fazerem-no, serão também culpados da insensibilização dos cidadãos para o problema e um contributo para o agravar da situação catastrófica que o país vive.