Pedro Moura, Expresso online (107 20/01/2021)

 

 

As discussões sobre corrupção ou fraude tendem a centrar-se em aspetos sistémicos, tendendo-se a esquecer que o ‘sistema’ funciona sobre algo muito mais profundo: a cultura.

Os ‘esquemas’, os deficientes mecanismos de deteção, o arrastar inconcebível dos processos judiciais, a sistemática impunidade dos casos de corrupção, são todos eles um ‘sistema’ que é baseado na cultura do povo que somos.

Alguém considerar, conceber e levar a cabo um ato fraudulento e/ou corrupto é sempre, no limite, um ato individual consciente exercido por um ou mais agentes, no meio de um caldo cultural de costumes e influências.

Importa assim perceber melhor o que é esse caldo cultural. Visto sermos péssimos juízes em causa própria (basta termos noção que somos os ‘melhores’ do mundo em praticamente tudo), temos de tentar olhar para nós a partir de fora, desejavelmente com base em dados com um mínimo de objetividade e credibilidade.

O site da Hofstede Insights disponibiliza um conjunto interessante de dados comparativos de traços culturais de um largo número de países, entre os quais a nossa ocidental praia lusitana.

Para tentar perceber as diferenças entre Portugal e outros países menos corruptos, recorri ao Corruption Perceptions Index (CPI) da Transparency International para identificar os países europeus mais bem classificados neste índice, por forma a comparar com Portugal nas várias dimensões culturais do Hofstede Insights. Estes países são: Dinamarca (1º país no ranking do CPI), Finlândia (3º lugar CPI), Suíça e Suécia (4º lugar CPI ex-aequo). Para nota, Portugal ocupa o 30º lugar no CPI, ex-aequo com Barbados, Qatar e Espanha.

Relativamente a ‘Power Distance’ (distância ao poder), esta dimensão expressa o grau em que os membros menos poderosos de uma sociedade aceitam e esperam que o poder seja distribuído de forma desigual. Valores baixos nesta dimensão espelham sociedades em que as pessoas exigem justificações para desigualdades de poder e se esforçam para equalizar a distribuição de mesmo. Valores elevado indiciam uma atitude de ‘comes e calas’ ou ‘respeitinho’. Penso que é fácil de perceber onde Portugal está, e em termos de corrupção onde isto leva.

Sobre a dimensão ‘Individualism’ (vs ‘Colectivism’), valores elevados indicam uma estrutura social pouco rígida, na qual é esperado os indivíduos assumirem a responsabilidade por si e pela sua família. Valores mais baixos nesta dimensão indiciam uma lógica mais ‘Coletivista’, em que os indivíduos esperam que a família ou grupos a que pertencem tomem conta deles em troca de uma lealdade inquestionável. Mais uma vez é fácil de perceber onde lealdade inquestionável leva no que a corrupção toca, sendo bem clara a posição de Portugal também nesta escala.

Acerca de ‘Long-term Orientation’ (orientação ao longo prazo), valores elevados denotam uma sociedade com foco no futuro, apostada na evolução social e económica baseada na mudança e na educação, com olhos postos em objetivos de longo prazo, quer para as gerações atuais, quer para as vindouras. Valores baixos indiciam sociedades com preferência pela manutenção de tradições e normas estabelecidas, olhando com desconfiança para mudança sociais. Um dito português aplicável à pontuação de Portugal nesta escala poderia ser ‘na mesma como a lesma’ (ou ‘na lama como a lesma’). Por cá todos parecem achar sempre que é preciso mudar, mas somente da boca para fora.

Agora ‘Indulgence vs Restraint’  (indulgência vs constrangimento). Esta dimensão representa o nível ao qual uma sociedade permite os seus membros gozarem a vida. Valores altos indicam uma sociedade que se permite a gratificação derivada da satisfação de impulsos humanos básicos e naturais relacionados com a diversão e o apreciar da vida. Valores mais baixos são característicos de sociedades que se regulam por normais sociais mais estritas e repressivas, contrárias à possibilidade de gratificação pessoal. Aparentemente as sociedades dos países em comparação com Portugal andarão mais preocupadas em viver e gozar a vida que em inventar ‘esquemas manhosos’. Será que o sermos mais ‘tristonhos’ nos leva a buscar compensação em ocupações menos nobres?

Por fim, a minha dimensão favorita: ‘Uncertainty Avoidance’ (aversão à incerteza, ou aversão ao risco). Esta dimensão representa o grau de incómodo dos membros de uma sociedade com a incerteza ou ambiguidade. A principal questão aqui é: como lida uma sociedade com o facto de o futuro não poder ser conhecido? Evita tomar atitudes perante a incerteza, resignando-se e aceitando passivamente o que vier a ser o futuro, mantendo códigos de crença e comportamento rígidos, bem como intolerância para com ideias não ortodoxas (valores elevados)? Ou, pelo contrário, aceita a incerteza com naturalidade, tentando gerir e controlar o futuro com uma atitude pragmática e prática, aberta às novidades (valores baixos)? A posição de Portugal nesta dimensão é, para mim, exemplificativa de um espírito tacanho e medroso, que nos paralisa enquanto sociedade perante o futuro, e nos coloca à mercê de grupos de poder que apostam tudo no clientelismo e na criação de um nepotismo democraticamente legitimado.

Para quem gosta de visualizações de dados (como eu) deixo uma outra visão dos mesmos dados num outro formato

Diria, no final de tudo isto, que somos o nosso principal inimigo. Diria ainda que enquanto nos continuarmos a enganar alegremente sobre quem realmente somos, abanando a cauda de cada vez que um qualquer site internacional nos nomeia como os melhores do mundo em qualquer categoria sem interesse nenhum, e não assumirmos de vez as nossas lacunas a nível cultural, dificilmente teremos uma chance de sair deste marasmo que nos arrasta paulatinamente para a cauda da Europa.

Combater fraude e corrupção é combater a nossa própria cultura de cabeça erguida e olhos abertos. Não tenhamos medo ou vergonha disso. Não culpemos simplesmente o ‘sistema’ para nos desculparmos a nós próprios de todas as vezes que desviamos o olhar ou aceitamos que ‘é mesmo assim’.

Tentemos, pelo menos tentemos, não ser um país de grunhos. Acreditem, não nos fica nada bem.

Figura 1 – Índices segundo Hofsted Insights
Figura 2 – Índices segundo Hofsted Insights