Mário Tavares da Silva, Expresso online (104 30/12/2020)

 

 

As burlas, as fraudes online e outros negócios de perfil criminoso, alguns deles em regime porta-a-porta, foram inventados pelos abutres oportunistas do costume e proliferaram (e assim continuam), sem freio, irrompendo lá onde o medo e a solidão dos mais vulneráveis, em especial os mais idosos, abriram espaço. Esta é, se me permitem, uma área a merecer a maior das atenções por parte das entidades competentes, em particular as de investigação criminal, de regulação e de fiscalização e controlo

Estamos a dois dias do final de mais um ano.  

Um ano, por sinal, muito diferente de todos os outros. Daqueles sobre que versará, certamente, nos manuais de História, um dos mais terríveis capítulos da vida política, social, económica, emocional e sanitária da humanidade.

Um ano em que, sejamos claros, fomos capazes do melhor e do pior. Um ano como há muito não vivíamos. Intenso, assustador, desafiante e disruptivo, a reclamar de todos e de cada um de nós, o mais corajoso exercício de superação perante uma das maiores catástrofes sanitárias mundiais de que há memória.

Um ano a que, é certo, se seguirão muitos outros, num permanente e imparável devir mas em que nada, rigorosamente nada, será como dantes.

Aqui neste paradisíaco recanto da Europa à beira mar plantado, o país parou e, um pouco por toda a parte, o mundo estremeceu, vergado perante um inimigo invisível e desconhecido.

O coronavírus foi (e infelizmente continuará a ser por mais algum tempo) o pior dos nossos mais tenebrosos pesadelos. Como sabiamente referiu Iraj Harirchi, Vice-Ministro iraniano, o coronavírus é um “vírus democrático, não distinguido entre ricos e pobres”. E isso, por si só, já nos deve fazer parar e pensar sobre o que verdadeiramente nos aconteceu.

A verdade é que perante o desconhecido, fomos tateando, aqui e ali, qual o caminho que melhor nos protegia. Estados de emergência, confinamentos, recolhimentos obrigatórios, distanciamentos sociais e outras medidas avulsas de combate à pandemia, foram sendo tomadas um pouco por toda à parte e com intensidades de geometria variável.

Apesar de tudo isso, morreram muitos dos nossos e muitos, por muito que lutemos, ainda irão morrer, fruto deste vírus que, como provocatoriamente refere Bernard-Henri Lévy, nos enlouquece.

Neste ano que agora finda, provámos que somos capazes de grandes feitos.

No meio de tanto medo, não nos acobertámos por detrás do biombo da indiferença e da resignação. Pelo contrário. Fomos corajosos, bravos, resilientes e, sobretudo, solidários e de uma generosidade e altruísmo que nos deve encher de orgulho, procurando sempre, aqui e ali, da forma que nos foi possível, ajudar o próximo, estendendo-lhe a mão e incentivando-o a não desistir. Neste ambiente de grande incerteza, as crianças, as nossas crianças, mostraram estar à altura de serem os homens e as mulheres do futuro, ajudando, com o seu sorriso e resiliência, aqueles que fraquejavam.

Voltaram às escolas e souberam responder com inexcedível sabedoria, força e enorme beleza a um vírus escondido, traiçoeiro, dissimulado e que tudo fez (e tem feito) para semear a desgraça.

Que crianças fantásticas estas que nós temos!

Que exemplo de vida que elas, tão pequenas, foram capazes de nos transmitir.

Jamais nos esqueceremos da icónica, esmagadora e poderosa mensagem de que tudo iria ficar bem (“andrà tutto bene”), desenhada em cartazes e pintada em lençóis por milhares de crianças italianas e que tingiram de múltiplas cores a centelha de esperança que parecia soçobrar, num inigualável e irrepetível gesto de união de todos os povos, a braços com a terrível pandemia.

Serviu, também, para prestar a mais do que merecida homenagem à luta então travada pelos hospitais italianos, logo nos primeiros meses da pandemia, e ao isolamento social que começava então a campear um pouco por toda a Europa.

Mas também fomos, como sempre, capazes do pior.

As burlas, as fraudes online e outros negócios de perfil criminoso, alguns deles em regime porta-a-porta, foram inventados pelos abutres oportunistas do costume e proliferaram (e assim continuam), sem freio, irrompendo lá onde o medo e a solidão dos mais vulneráveis, em especial os mais idosos, abriram espaço. Esta é, se me permitem, uma área a merecer a maior das atenções por parte das entidades competentes, em particular as de investigação criminal, de regulação e de fiscalização e controlo.

Por fim, e já a cortar a meta de 2020, eis a luz no fundo do túnel. Uma luz que é, também, uma das mais belas e extraordinárias páginas que ficará inscrita nos anais da história da medicina. Uma vacina num tempo recorde. No entanto, desenganem-se os mais exuberantes, pois a tão desejada vacina que começa agora a ser ministrada não constitui a panaceia para todos os nossos males. Ela é, apenas e tão-só, o início do contra-ataque da humanidade ao coronavírus, sendo que não devemos olvidar, por um segundo que seja, que todos ainda estamos em campo.

A bola rola de um lado para o outro e todos estamos em jogo, vacinados e não vacinados. Isto significa que temos que continuar a fazer todos, o nosso trabalho de casa e a cumprir, escrupulosamente, as regras definidas pelas autoridades de saúde responsáveis.

É que como brilhantemente nos interpela Tolentino de Mendonça no seu último livro “O que é amar um país – O Poder da Esperança”, “a calamidade é uma espécie de lugar distópico, contrário de uma utopia: uma desgraça”, ao passo que “o tempo da graça é o inverso, é a utopia, o tempo idealizado, essa espécie de plenitude do desejo”.

O desejo, digo eu agora, é que tudo em 2021 retome a sua normalidade e possamos, gradativamente, recuperar, sobretudo, a liberdade que o maldito vírus nos roubou.

Quero acreditar mesmo, como aquelas fantásticas crianças italianas profetizaram, que 2021 é o ano em que tudo, mas mesmo tudo vai ficar bem!