Carlos Pimenta, Dinheiro Vivo (JN / DN)

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Aspectos já referidos

Na última crónica chamamos à atenção sobre os impactos das «redes sociais» [1] sobre a organização da sociedade, acabando, de alguma forma, por se imporem como instrumentos de trabalho comuns, por vezes contra a ética dominante, e necessária. Mais, essas violações da livre escolha individual e do livre arbítrio de cidadãos surgem frequentemente como desejadas, essencialmente em resultado de hábitos adquiridos. A grande quantidade de notícias falsas ꟷ e a consequente influência de uns países sobre os assuntos internos de outros, a viciação de mentalidades e de resultados eleitorais, entre outros aspectos ꟷ são um exemplo frequente. A actuação da Cambridge Analityca, manipulando os resultados eleitorais quando da penúltima eleição para a presidência dos EUA é hoje detalhadamente reconhecida [2].

O seu significado

Nesta  crónica vamos reflectir um pouco sobre o assunto.

Se hoje é fácil encontrar consequências nefastas das redes sociais, mesmo para além das anteriormente referidas (grande dependência humana da tecnologia, apoio a movimentos terroristas, autoflagelação e suicídios, etc., bem patente no período de pandemia que actualmente vivemos, levando a movimento de massas por algumas posições que são a completa negação de descobertas científicas, por vezes seculares, como dizendo que a Terra é plana) nunca nos poderemos esquecer dos grandes progressos que permitiram (por exemplo, reunir famílias, pôr em contacto pessoas distantes, compatibilizar receptores e doadores diversos, incluindo salvando vidas). Hoje qualquer pessoa tem um email, traduz textos de e para muitas línguas, procura os estabelecimentos comercias existentes numa zona, contacta instantaneamente com os amigos em qualquer parte do mundo, divulga conhecimentos à distância, tem acesso a muitos livros e artigos, etc. Mais, tudo isto é gratuito. Não temos de pagar por tal.

Tudo gratuito! Maravilhoso para todos nós. Mas não será que tal é estranho quando é praticado por uma empresa (como, por meros exemplos, a Google, o Facebook ou o Twitter entre muitas outras) , que visa legitima e eticamente a maximização do lucro? Que, no caso do usufrutuário dessa gratuidade é uma empresa ou um profissional em nome individual que visa também essa racionalidade económica? Como se justifica?

De uma forma simples. Tudo isso é gratuito porque todos nós somos as cobaias. Os seus clientes são os anunciantes que optam por eles caso garantam mais vendas que as outras vias. Quem é que os anunciantes visam atingir? Nós. Por isso é que todos nós, utilizadores, somos estudados e analisados ao pormenor, perdendo toda a privacidade:

“A   cada segundo, os algoritmos alimentam-se dos nossos dados pessoais. Em que tipo de links  clicamos? Que vídeos vemos  até ao fim? A que velocidade passamos de uma coisa para outra? Onde nos encontramos no momento em que fazemos estas coisas? Com quem nos relacionamos, online e na vida real? Que expressões faciais usamos? Como é que a tez da nossa pele muda em diferentes situações? O que estávamos a fazer antes de decidir comprar, ou não, alguma coisa? Votar ou não votar?” [3]

Com estas e outras análises classificam-nos e sabem como nos influenciar, juntando os conhecimentos crescentes das Neurociências, da Psicologia, da Inteligência Artificial, do Marketing, utilizando intensa e sistematicamente diversos  algoritmos.

Pagamos indirectamente

Dissemos anteriormente que nada pagamos pela utilização das redes sociais ou do Google, mas a verdade é que efectivamente pagamos de outra forma. Por outras vias. As empresas das redes sociais, como grande parte das grandes empresas, sobretudo multinacionais, pagam uma grande parte dos seus impostos nos paraísos fiscais, usufruindo da legalidade do roubo de uns países por outros e de uma estreita rede de mudança de propriedade e de branqueamento da riqueza.

E já sabemos ꟷ este assunto tem sido abordado mais frequentemente ꟷ que a fraude fiscal de alguns traduz-se sempre em maiores pagamentos da nossa parte, sobretudo dos honestos, e daí resulta nós pagarmos mais do que deveríamos.

Observações

[1] Segundo Mercklé, P. (2011). Sociologie des réseaux sociaux. Paris: La Découverte.

O antropólogo britânico John A. Barnes,  que foi o primeiro a usar o  conceito de     "rede social"    num famoso artigo publicado em 1954, ainda ficou  surpreendido quando descobriu que tinha ajudado a forjar o título de um dos grandes  sucessos do cinema mundial em 2010, a Rede Social,  o filme de David Fincher que conta a criação do Facebook de Mark Zuckerberg

Acrescente-se que o que é dito neste artigo se estende a muitas outras aplicações informáticas gratuitas, porque, em contrapartida, aceitamos ser destinatários de publicidade.

[2] Sobre o assunto, veja-se, por exemplo, «Nada é Privado» disponível na Netflix.

[3] Meros exemplos de uma actividade sistemática que permite classificar cada um de nós de uma forma diferenciada. Citado em Lanier, J. (2020 [2018]). Stop aux Réseaux Sociaux - 10 bonnes résons de s'en méfier et de s'en libérer (G. Bardiaux, Trans.). Louvain-la-Neuve: DeBoeck Superieur, pág. 11.