Carlos Pimenta, Expresso online (100 02/12/2020)

 

 

Os paraísos fiscais e a "concorrência entre países na arte de furtar os fisco alheio"

1 – Na última crónica neste mesmo local mostrámos o perigo que representa a lavagem de dinheiro, hoje frequentemente associado ao terrorismo, talvez mais como palavra de ordem do que como realidade. Por outras palavras, procura-se reforçar o horror generalizado ao branqueamento do rendimento, dada a sua gravidade para o futuro da humanidade (domínio dos negócios lícitos pela criminalidade organizada, corrupção e generalização das fraudes, atentados à democracia, entre outros).

Concluímo-lo mostrando a existência de estruturas legais para o fazer, criadas pelos Estados, os conhecidos paraísos fiscais. Constituindo uma densa rede internacional (capaz de encobrir propriedade, manipular preços e diversificar os crimes fiscais) e tendo como núcleos dominantes a América do Norte e a Europa quer indirectamente, como o Reino Unido (via dependências e Commonwealth of Nations), quer directamente como a Suíça, o Luxemburgo e a Holanda. É exactamente sobre esta via ꟷ tratada e defendida como «concorrência económica» quando mais não é que «concorrência entre países na arte de furtar o fisco alheio» ꟷ que trataremos nesta crónica, aproveitando para o efeito um recente documento da Rede de Justiça Fiscal (RJF).

2 – Diversos organismos internacionais se têm pronunciado contra a existência dessa rede de paraísos fiscais e, obviamente, de cada um, mas há o reconhecimento generalizado da falta de vontade política de o decidir. Assim, tem-se recorrido sobretudo a vias indirectas de os condicionar. São exemplos disso as dificuldades criadas em alguns offshores (como as Ilhas Caimão) à lavagem de dinheiro, à troca «automática» de informação entre administrações fiscais ꟷ nem sempre realizadas e verdadeiras ꟷ proposta pela OCDE.

Tendo em atenção que do ponto de vista fiscal os offshores servem particularmente para as actividades internacionais das multinacionais e das grandes fortunas, manipulando a seu favor o pagamento de impostos (isto é, pagando o mínimo possível), tem sido frequentemente referido que “os relatórios de actividade e de contas das multinacionais devem ser públicos e descrevendo a actividade realizada em cada país (ou região), de acordo com um conjunto de regras contabilísticas claramente definidas”, começando por admitir que tal é possível e que há capacidade e vontade política para o fiscalizar.

São esses os dados retidos e analidasos pelo referido documento da RJF (“The State of Tax Justice 2020”), que de seguida transcrevemos (muitíssimo parcamente).

(Aproveitamos também para referir, tendo-o já feito noutras crónicas noutros jornais, o referido no documento do OBEGEF, preocupado com os impactos das multinacionais americanas na União Europeia, disponível no site daquela organização)

3 – O documento agora publicado pela RJF, utilizando para tal informações prestadas pela OCDE, exige uma grande atenção de todos nós, sendo publicado em várias línguas, incluindo o português. É certo que se centra na actuação das empresas (“das corporações e indivíduos mais ricos em detrimento de todos os outros”) em termos fiscais, mas trata-se de um documento vital, assumindo a posição “de que os impostos sejam pagos onde ocorre a actividade económica”.

Acrescente-se em complemento que mesmo “as populações dos paraísos fiscais mais agressivos, que minam os direitos tributários de outros países, normalmente não beneficiam dos limitados «ganhos» obtidos”.

Para aguçar o apetite do leitor apresentamos de seguida algumas, parcas, informações sobre o seu conteúdo:

  • “o mundo perde anualmente mais de 427 biliões de dólares americanos (427.000.000.000) em impostos devido ao abuso fiscal internacional. Desses 427 biliões, 245 biliões são perdidos para empresas multinacionais que transferem lucros para paraísos fiscais a fim de subdeclarar rendimentos obtidos em países onde fazem negócios e, consequentemente, pagar menos impostos do que deveriam. Os restantes 182 biliões são perdidos para milionários que escondem activos e rendimentos não declarados no exterior, fora do alcance da lei.”
  • “Os países de renda mais alta perdem mais impostos (382,7 biliões) do que os países de renda mais baixa (45 biliões). No entanto, as perdas fiscais dos países de renda mais baixa são proporcionalmente maiores quando comparadas à receita tributária que normalmente arrecadam. Os países de baixa renda perdem o equivalente a 5,8% de sua receita tributária arrecadada, enquanto os países de alta renda perdem 2,5%. Embora essa tendência se mant nha para perdas fiscais devido ao abuso de impostos corporativos, onde os países de baixa renda perdem o equivalente a 5,5% de sua receita tributária arrecadada e os países de alta renda perdem 1,3%, os países de alta renda perdem proporções maiores quando se trata deperdas fiscais para o sector privado, a evasão fiscal. Os países de renda mais alta perdem o equivalente a 1,2% de sua receita tributária colectada, enquanto os países de renda mais baixa perdem 0,3%. Reconhecemos várias razões potenciais para este resultado. Embora seja possível que simplesmente existão relativamente menos indivíduos ricos em países de renda baixa que utilizam centros financeiros offshore para esconder os seus activos, esta conclusão pode também ser resultado de deficiências nos dados disponíveis, ou da nossa metodologia. Análises futuras possivelmente adoptarão uma abordagem menos conservadora caso melhores dados estejam disponíveis.” Por outras palavras, tendo em conta a situação pandémica que vivemos, “anualmente os países perdem o equivalente a mais de 34 milhões de salários anuais de enfermeiros para paraísos fiscais”.
  • Por grandes regiões do Globo temos a África com uma percentagem anual dos tributos perdidos pelos países em função da actuação das empresas nos paraísos fiscais de 33%, Ásia com 18%, Caraíbas com 8,9%; Europa com 14,0%, América Latina com 26,9%, América do Norte com 16,8%, Oceânia com 15,8%.

4 – Para terminarmos no estímulo à leitura deste documento disponível na Internet, alguns dados sobre Portugal: perda anual em impostos devido ao abuso fiscal global: $1.046.072.964, correspondendo 1,9% da receita tributária. Simultaneamente causa danos em outros países em $553 milhões.

5 – Enfim, os paraísos fiscais são um assunto que a todos implica. Os povos estão a ser roubados por iniciativa dos seus eleitos. É imperioso actuar.