Carlos Pimenta, Dinheiro Vivo (JN / DN)

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Tenho defendido com alguma insistência que só em democracia há condições para um eficaz combate da corrupção: porque as situações de fraude e irregularidade do que é considerado «normal» são conhecidas da generalidade dos cidadãos,  porque há liberdade de imprensa para uma sistemática abordagem de tais temáticas ꟷ nem sempre da forma mais adequada ꟷ, porque há condições institucionais de mudança de rumo do comportamento do Estado e, em particular, das polícias e da Justiça.

Talvez pela importância actual da luta contra a fraude ꟷ intensificada com a chamada globalização brotada na década de 80 do século passado ꟷ, talvez por pessoalmente ter vivido intensamente a luta académica em 1968-69 em Lisboa ꟷ enquanto presidente de uma associação de estudantes dinamizadora de muitas greves ꟷ, a qual criou condições mais favoráveis à luta académica em Coimbra em 1969, e anos seguintes; talvez por ter integrado a Comissão Nacional dos Estudantes Portugueses, eleita em grande plenário de estudantes do país em Coimbra, as referidas problemáticas surgiram-me com intensidade particularmente viva quando se comemora um século da «Tomada da Bastilha», naquela que é a mais antiga universidade portuguesa. Talvez por ter vivido tudo isso, inevitavelmente associado à ausência de qualquer notícia correcta sobre a nossa luta nesses tempos, às cargas policiais a qualquer hora do dia e da noite, às ameaças de vida e de prisão por parte da polícia política, à possibilidade de ida para a guerra colonial por quatro anos, conheço por experiência de vida a grande diferença entre a ditadura e a democracia, e sinto, porque amo muito os meus filhos e netos, a necessidade de alertar para os perigos que aquela representa. Como diz Riemen “o bacilo fascista estará sempre presente no corpo da democracia de massas”.

 

Temos alertado, frequentemente, que a fraude é velada, não é directamente visível, é encoberta da generalidade dos cidadãos, mesmo em muitas situações em que somos uma das vítimas, como ꟷ um exemplo entre muitos ꟷ nas fraudes desportivas e o seu impacto na aposta que fizemos.

Tomamos conhecimento da existência de fraude quer porque notamos que fomos enganados ꟷ porque foram à nossa conta bancária e roubaram-nos, porque mandaram um email ameaçando cortar a internet de que tanto dependemos em tempo de covid, se não pagássemos, um determinado montante, o que fizemos inadvertidamente, vindo posteriormente a saber que foi mandado por alguém, indivíduo ou instituição, que nada tinha a ver com esse acesso ao mundo, por exemplo ꟷ, quer porque sabemos dos maus negócios da banca e dos nossos pagamentos, quer porque sabemos que um determinado político foi corrompido e que há juízes que decidem processos por dinheiro, quer ainda porque os órgãos de informação falam de isto e daquilo que são fraudes. Aliás esta influencia da imprensa vai a tal ponto que há uma tendência de identificação terminológica entre fraude e corrupção.

Ora tal só é possível porque não há a censura ꟷ este texto nunca seria publicado se aquela existisse ꟷ a qual obrigava que todas as informações fossem previamente «validadas»; porque não há uma polícia política para ter muitos informadores e torturar e prender quem tentasse não respeitar essa pretensão; porque não há policias para cumprirem essas ordens; porque não há toda uma série de repressões e vilanias legais. Porque há partidos políticos e eleições!

Em síntese em ditadura há muito menor percepção da fraude que em democracia, mas a fraude existia e tinha muitos ninhos legais de realização.

 

A própria lei servia para impor o regime ditatorial. Se o regime escrevia na Constituição de 1933, no seu Art. 8º, “a liberdade de expressão de pensamento sob qualquer forma” (assim como outras liberdades) era porque noutros artigos as restringia e podiam-se legalmente criar todas as instituições para o impedir por todas as formas, mesmo bárbaras.

A liberdade de concorrência económica também era negada por todas as formas ꟷ os «homens do regime» até podiam comprar instituições bancárias com empréstimos do banco transaccionado ꟷ, inclusive pela lei de condicionamento industrial.

Apenas mais um exemplo. Neste período todas as notas de escudos, tinham sempre a designação «ouro» típico da convertibilidade. De facto “num período em que o sistema monetário de padrão ouro ia morrendo um pouco por todo o lado (a começar com as crescentes dificuldades de convertibilidade da libra, moeda ainda dominante na arena internacional, que iria desembocar na declaração da sua inconvertibilidade) em Portugal apostava-se no retorno ao padrão-ouro e à sua lógica de funcionamento económico. Tal transparece de toda a legislação de então, como no decreto 19871”. Contudo o decreto 20683 viria a «suspender temporariamente» a convertibilidade. Essa suspensão iria sendo prorrogada até 1933, data em que foi posta de lado, provavelmente pelo regime de então forçado pela inconvertibilidade da libra. Mas a intenção ficou e a lógica de actuação económica também.

E assim sendo lembro que gente da década de 70 ainda acreditavam que aquelas notas representavam ouro, mas mais não eram que papel, carcomido pela inflação que então grassava.

 

Enfim se queremos combater a fraude há também que o fazer pela consolidação e alargamento da liberdade democrática.