Óscar Afonso, Expresso online (092 07/10/2020)
Enquanto mirandês, cabe-me chamar à atenção para as reivindicações de um movimento cultural, emanado da sociedade civil local, que reclama a reposição de alguma justiça sobre o tratamento injusto a que, sobretudo nos últimos 60 anos, a Terra de Miranda do Douro tem estado sujeita.
Miranda é mais oriental cidade lusa, onde primeiro nasce o sol em Portugal (Peinha las Torres 41°34′N 6° 1′W). Dista 50km de Zamora, onde Afonso Henriques se armou cavaleiro em 1125, e onde, em 1143, assinou o tratado com o mesmo nome. É na Terra de Miranda que ainda se mantém viva a língua que pode ter sido a língua materna de Afonso Henriques, o leonês, hoje chamado mirandês, reconhecido como Língua da Terra de Miranda pela lei 7/99 de 29 de janeiro. Afonso Henriques era neto de Afonso VI, imperador de Leão, e filho de Teresa de Leão, ambos falantes de língua leonesa, a língua do remoto Reino de Leão. Portanto, Afonso Henriques falaria leonês/mirandês, tal como o seu avô e a sua mãe. Acreditamos que das suas idas a Zamora, a língua que falava com o seu primo, outra não seria que o mirandês, assentando aí os primórdios do bom costume português que consiste em falarmos de bom grado as línguas dos outros.
Pouco importa o desdém de alguns, quando querem apoucar esta nobre língua mirandesa, ao afirmarem que os seus falantes são escassas dez mil pessoas parolas. Fiquem a saber que, não sendo o mirandês uma mistura de português e castelhano, é mais uma língua românica que pode considerar-se de transição entre esses dois idiomas, possuindo várias caraterísticas linguísticas de um e do outro. Sendo assim, é justo dizer que o mirandês é compreendido tanto por portugueses como por espanhóis. Ora, se somarmos todos os falantes de português espalhados pelo mundo (250 milhões), com todos os falantes de castelhano (500 milhões), obtemos 750 milhões, pelo que a língua mirandesa não deixa de ser uma das línguas mais compreendidas no mundo!
Cento e cinquenta e cinco anos depois da assinatura do tratado de Zamora, em 1297, é D. Dinis que passa por Miranda para se dirigir à vila de Alcañices, onde assinaria com Fernando IV de Leão-Castela o “Tratado de Alcañices”. Foi, pois, a 30km a norte de Miranda que D. Dinis refundou definitivamente Portugal, restabelecendo a paz e fixando de forma quase irrevogável os limites fronteiriços definitivos entre os então reinos de Leão-Castela e de Portugal. Em 1494, quando o reino de Portugal de D. João II e a coroa Castelhana de Fernando II de Aragão quiseram dar ares de donos do mundo, foi a 120km de Miranda, em Tordesillas, que se assinou o tratado com o mesmo nome e, assim, como verdadeiros irmãos, dividiam o mundo entre si!
Já em pleno século XVI, a pedido de D. João III, a 22 de maio de 1545, o Papa Paulo III cria a diocese de Miranda, amputando simultaneamente à arquidiocese de Braga a maior parte do seu território transmontano e excisando todas as concessões territoriais que os mosteiros leoneses ainda tinham em Portugal, consolidando a hegemonia do território intrafronteiras para Portugal.
Paulatinamente, a partir do século XVI, a grande cápita Lisboa fez de Portugal uma carreira junto ao mar, o resto são as costas que não se vêm ao espelho. Com o tempo, a minha terra e todo o interior do país foi-se contentando a viver de sobras, de migalhas, sem nunca ser capaz de se zangar de verdade. Um dia, ninguém sabe bem quando, o país pôs-se a caminho de Lisboa e agora não encontra modo de voltar! Mas que Portugal muito deve a Miranda é pura verdade.
Hoje, as populações da Terra de Miranda estão preocupadas com a anunciada venda das barragens hidroeléctricas de Miranda, Picote e Bemposta, que há 60 anos foram construídas, para desenvolver Portugal. O concessionário pretende vendê-las por 2,2 mil milhões de euros. Outrora consideradas como investimentos de desenvolvimento local, hoje apenas dão posto de trabalho ao vigilante durante a fase de exploração, concentrando o “real” emprego no litoral, em Lisboa. As três barragens produzem imensa riqueza para o país, cerca de 1/3 da energia hidroelétrica produzida pela EDP no país, gerando uma riqueza anual de cerca de 300 milhões de euros (200 milhões de euros para o concessionário, a que acrescem 100 milhões de impostos).
É justo que esses valores, gerados pelos recursos naturais da Terra de Miranda, sejam minimamente partilhados com as populações. Somos conhecidos por ser de uma região atrasada, com uma economia deprimida e é verdade! Mas, paralelamente, temos três das unidades industriais mais rentáveis do país. Avaliada pela riqueza produzida na Terra de Miranda, a riqueza criada por habitante (tecnicamente o PIB per capita) do Município de Miranda, onde se situam as barragens de Miranda e Picote, é o 6.º mais rico do país e o de Mogadouro, onde se localiza a barragem de Bemposta, é o 25.º. Porém, avaliando o PIB pelo outro método, que é o da riqueza efetiva das famílias, Miranda passa para 182.º lugar e Mogadouro para 225 (dos 308 municípios).
Existe, portanto, um regime de partilha de riqueza que empobrece os cidadãos da Terra de Miranda em proporções inaceitáveis, que transporta este território de um dos mais ricos para um dos mais pobres do país, que mina a coesão territorial e agrava todos os anos as desigualdades. Da riqueza criada pelas barragens, praticamente nada fica na Terra de Miranda; não dão emprego em Miranda, Picote ou Bemposta, mas em Lisboa. Infelizmente, dos lucros da concessionária, nada é reinvestido aqui. Por outro lado, da riqueza pública, as imensas receitas fiscais que as barragens geram, nada é partilhado com as populações – o IVA sobre a energia elétrica, o IRC dos lucros da exploração, são receitas exclusivas do Estado Central, e mesmo os impostos municipais, que são receitas dos municípios, paradoxalmente, quase nada fica aqui. A Derrama gerada pelos lucros das barragens fica maioritariamente em Lisboa e a parte do IVA da energia elétrica produzida, do Fundo de Equilíbrio Financeiro dos Municípios, beneficia apenas Lisboa.
Qualquer parcela de terra de um (pobre) agricultor ou a casa de habitação de um (pobre) mirandês pagam IMI, mas os edifícios conexos com as barragens, que valem centenas de milhões de euros, nada pagam. No que respeita ao negócio da venda das barragens, o imposto que incide sobre o preço era, até 2003, uma receita dos municípios onde se localizam, de 10% a título de Sisa mas corresponde agora apenas a uma taxa de 5%, que é receita do Estado. A taxa de recursos hídricos, que é cobrada por cada m3 de água que passa nas barragens, serve para financiar o Fundo Ambiental e a Agência Portuguesa do Ambiente. Essas receitas, imagine-se, são usadas para financiar os passes sociais de Lisboa e Porto. Diz a lei que cabe ao Fundo Ambiental recuperar as margens dos rios dos prejuízos ambientais produzidos pelas barragens. Porém, essa lei está por cumprir, não havendo meio de sair do papel.
Apesar deste rigor na transferência da riqueza para fora da Terra de Miranda, infelizmente os custos ficam cá todos, em especial os ambientais. Assim, de que serve a localização de três das unidades produtivas mais rentáveis do país na Terra de Miranda se são, basicamente, um passivo de elevado custo? Este regime de captura de toda a riqueza e a sua transferência para Lisboa é o principal fator de desumanização da região. As pessoas migram para onde há riqueza e emprego e, neste caso, migram atrás da riqueza aqui produzida, que, em devida proporção, lhes pertence.
O leitor certamente concordará que este é um problema grave de injustiça, de falta de solidariedade regional e que mina o desenvolvimento local. Da mesma maneira que, como país, reclamamos solidariedade da União Europeia (UE) para promover a coesão territorial na Europa, não é justo que as populações da Terra de Miranda reclamem a mesma coesão no contexto nacional, ainda por cima de acesso à riqueza produzida localmente? Tal como se entende que uma união de povos desequilibrada não tem futuro, também nós acreditamos que um país desequilibrado e injusto na distribuição da riqueza não tem futuro. A nossa luta é por justiça, pela viabilidade da região e pelo futuro do nosso país. A imensa riqueza produzida pelos recursos naturais da Terra de Miranda deve ser partilhada com as suas populações, repondo o que é justo.
O que exigimos não aumenta despesa, défice ou dívida. Também não estamos contra ninguém e não é nosso propósito criticar. Queremos apenas oferecer ao país um modelo mais justo e inclusivo de partilha da riqueza, que acomode todos e do qual nos possamos orgulhar.
Em primeiro lugar, desejamos que as populações sejam ouvidas, participem no negócio da venda das barragens e que os seus interesses sejam devidamente atendidos. Por isso, os municípios de Miranda e Mogadouro devem participar na formação da vontade do Estado em consentir o negócio. A “concessão do aproveitamento da energia das águas do Douro”, como expressivamente se menciona na decisão do Governo de 29/7/1954, estabelece uma relação contratual que não prevê nem autoriza o concessionário a ceder o seu direito, pelo que só com o acordo do Estado o poderá fazer. Pretendemos, enfim, que o Governo estabeleça medidas condicionais de aceitação do negócio que satisfaçam os interesses das populações.
Pretendemos corrigir um conjunto de quatro desigualdades – financeira, cultural, histórica e ecológica. Há, pois, necessidade de correção de injustiças fiscais, mediante a adoção de alterações legislativas que revertam receita para os municípios. Há, igualmente, necessidade de elaborar um plano estratégico de desenvolvimento, financiado pelas receitas municipais geradas pela partilha da riqueza das barragens, bem como por fundos europeus, que corrijam as desigualdades cultural, histórica e ecológica. Esses investimentos devem ser reprodutivos, para serem sustentáveis economicamente, pelo que devem centrar-se, numa primeira fase, na cultura (língua, literatura, música, danças, folclore e gastronomia) e nas vantagens comparativas da região (vinho, azeite e turismo), atribuindo prémios, incentivando a investigação e a criação de infraestruturas essenciais.
A Terra de Miranda desempenhou um papel determinante na fundação de Portugal e na manutenção da sua independência. Nessa sua função histórica, foi destruída várias vezes. A última foi há cerca de 257 anos. Os escombros dos seus monumentos nunca foram recuperados e o que restou do seu castelo e das suas muralhas são hoje espaços sem vida e quase abandonados. A história de que são testemunho é um fator de riqueza único e merece um investimento que devolva as suas memórias às populações. Essas memórias podem produzir riqueza e ser um poderoso fator de atração turística. Respeitando a sua integridade e as regras da reabilitação, pretendemos que seja feito um investimento relevante que lhes devolva dignidade e os faça voltar a ser um fator de desenvolvimento económico, nomeadamente através da atração turística.
A Terra de Miranda possui um património ecológico único, que se carateriza pela sua espetacularidade, genuinidade e integridade. Contudo, as margens do Douro estão seriamente danificadas pelas pedreiras a céu aberto que subsistem sem qualquer proteção, pelas escombreiras que foram formadas com a movimentação de terras das barragens, e pelas construções e vias de circulação que foram abandonadas após as obras. As casas do bairro dos engenheiros na barragem de Picote e todo o seu património edificado é classificado desde 2011, pelo Estado, de Interesse Público, como exemplar da arquitetura industrial moderna em Portugal e caso de estudo pelas universidades de arquitetura. Mas esse património, a exceção da Pousada que foi recuperada para uso exclusivo dos altos quadros da EDP, está a devoluto e a degradar-se de forma vergonhosa e podia servir os interesses do turismo de qualidade desta região. Mas há mais casos de verdadeiros crimes ambientais continuados que duram desde há 60 anos. Chegou o momento de fazer, dizendo que as populações consideram esta situação insustentável.
Ao longo da História, a Terra de Miranda esteve no centro de conflitos políticos e militares entre Portugal e Espanha. A paisagem física, a memória e a cultura estão dolorosamente marcadas pelo sofrimento e pela destruição imposta por esses conflitos. Felizmente, Espanha não é mais inimigo da Terra de Miranda e converteu-se até no principal aliado económico. Pretendemos que a UE celebre a Terra de Miranda como um exemplo desse sucesso e do futuro. Queremos que o rio Douro não separe, mas una, que passe de fronteira a traço de união como era na antiguidade. Para isso necessitamos de investimento que integre as populações das duas margens, que crie uma rede viária ligando todos os monumentos e sítios históricos que se situam em ambas os lados das Arribas, muitos deles pré-históricos, quer pedonal, quer fluvial, quer ainda ferroviária. Neste último domínio, é premente concluir de vez o IC5, ligando-o a Zamora.