Manuel Abrantes, Jornal i

 

Os setores que não forem eleitos pelos planos de recuperação pós pandemia não podem ser abandonados

A “doença holandesa” não é um novo vírus que provoca mais uma doença que ataca o sistema respiratório, trata-se da crise que afetou o país das tulipas em 1959, depois da descoberta de gás natural na sua zona económica exclusiva.

A exportação de gás natural criou uma indústria altamente lucrativa, uma vez que os capitais nela investidos tinham um retorno muito superior aos que eram investidos nos restantes setores. Assim, os recursos da economia foram desviados para um único setor, ao mesmo tempo que a procura pelos florins holandeses (para comprar o gás) apreciou fortemente a moeda.

Com insuficiência de recursos e dificuldades em exportar outros produtos devido ao florim se encontrar muito valorizado, os restantes setores da economia foram enfraquecendo, provocando a insolvência de empresas e o desaparecimento de postos de trabalho. Neste contexto a solução encontrada foi o investimento crescente no setor mais lucrativo do país, transferindo-se para a fileira do gás natural cada vez mais recursos.

Cada vez mais empresários e trabalhadores foram atraídos por este novo Eldorado. Foram criadas empresas para perfurar o leito marítimo, fabricar plataformas, construir gasodutos, criar novos terminais no Porto de Roterdão e para efetuar outros investimentos relacionados com a exploração e comercialização do gás. Toda esta emergente transferência de recursos enfraqueceu os restantes setores.

O desequilíbrio económico posterior à descoberta do gás natural e à transferência de recursos colocou a Holanda na dependência da oscilação dos preços desta matéria prima nos mercados internacionais, o que provocou crises sucessivas e levou à criação da famosa expressão “doença holandesa”. 

Na Escandinávia, um país maior que a Holanda, mas com muito menos habitantes, era um sério candidato a sucumbir à “doença holandesa”. Apesar de também ter enriquecido com uma significativa descoberta de recursos naturais, a Noruega soube proteger os setores tradicionais.

Na Noruega, a riqueza obtida pelo petróleo serviu para transformar este setor num dos mais competitivos do mundo. Ao mesmo tempo, a restante economia tirou partido desta riqueza para investir e melhorar a produtividade. Este país da Escandinávia com cerca de cinco milhões e meio de habitantes exporta muitos recursos naturais, mas também exporta máquinas relacionadas com esses recursos e outro tipo de outro tipo bens.

Ao contrário do que sucedeu na Holanda, na Noruega os recursos provenientes da exportação de hidrocarbonetos serviram para proteger o futuro dos seus habitantes.  O país criou um fundo soberano (o Norges Bank Investment Management) onde é depositada uma percentagem significativa das referidas exportações.

 O Norges Bank Investment Management tem como finalidade garantir os benefícios sociais das gerações futuras e auxiliar o governo norueguês quando se verificar um desequilíbrio económico ou financeiro. Este fundo foi utilizado pela primeira vez em 2016, quando o país foi afetado pela queda no preço do petróleo.

A segunda “doença holandesa” pode voltar a ocorrer na sequência dos planos que os diversos países estão a adotar para recuperar as respetivas economias da crise provocada pelo vírus SARS-CoV-2.

Com recursos próprios ou alheios muitos países do mundo já aprovaram planos para recuperar as suas economias no mais curto espaço de tempo possível. Em alguns casos, foram selecionadas áreas onde os recursos disponibilizados pelas autoridades públicas devem ser investidos. Para o efeito, têm sido eleitas áreas como as transições digital, energética e climática.

A alocação de recursos públicos aos setores relacionados com as referidas áreas irá provocar que o retorno financeiro dos capitais privados investidos nesses setores será superior ao que é investido nos setores tradicionais.

Tal como aconteceu após a descoberta de gás natural na Holanda, 1959, os investimentos privados irão deslocar-se para os setores selecionados.

Assim, é essencial que não sejam cometidos os mesmos erros que levaram ao surgimento da “doença holandesa” do século passado. Os setores que não forem eleitos pelos planos de recuperação pós pandemia não podem ser abandonados, devendo antes ser criados incentivos para que não se verifique uma migração generalizada dos operadores económicos para os setores a apoiar.

Esta segunda “doença holandesa”, se se verificar, tem potencial para se tornar mais devastadora do que a primeira. Pois em meados do século passado na sequência da descoberta de gás natural na Holanda, os fundos que permitiram o enorme desenvolvimento deste setor em detrimento dos restantes tiveram origem nas exportações de gás. Embora com recurso a empréstimos que permitiram antecipar investimentos, o desenvolvimento da fileira do gás pagou-se a si própria.

Mais preocupante, ainda, é a possibilidade de ocorrer fraude na utilização dos recursos públicos aplicados na recuperação da economia.Dada a sua natureza pública, de origem nacional ou internacional consoante os casos, o seu desvio ilegítimo para a esfera privada poderá deixar os países ainda mais pobres.

Por outro lado, os meios atualmente existentes são mais sofisticados que aqueles que existiam na Holanda depois de 1959. Assim, a obrigatoriedade de todos os procedimentos que evolvam a utilização de fundos públicos tramitarem em sistemas informáticos devidamente certificados e auditáveis, a existência de segregação de funções no processamento de subsídios públicos e o acompanhamento da execução física dos projetos subsidiados poderão contribuir para evitar uma segunda “doença holandesa” nos diversos países do mundo com consequências piores que a primeira.