José António C. Moreira, Expresso online (084 12/08/2020)
Nestes tempos de pandemia, em que quase toda a atenção dos media parece girar em torno do sobe e desce do número diário de infetados pela pandemia, dos milhões que vão vir de Bruxelas e (supostamente) irão moldar o futuro da país, ou das contratações e processos judiciais no universo do S.L. Benfica, há notícias que surgem e desaparecem como estrelas cadentes em noite de verão. Algumas mereciam ser objeto de reflexão para que, pensado e discutido o que lhes está subjacente, se pudessem encontrar soluções que, efetivamente, contribuíssem para que, no futuro, Portugal viesse a ser um país diferente, para melhor, do que foi e é hoje.
O jornal Negócios, na sua edição online de 13 de julho, titulava “IGF quer apertar acesso de contribuintes de IRS à contabilidade organizada”. O pequeno resumo que se seguia referia que a Inspeção Geral das Finanças (IGF), no âmbito de uma auditoria ao modo como a Autoridade Tributária (AT) acompanha os contribuintes com rendimentos da categoria B do IRS (os denominados profissionais independentes) que haviam optado por possuir “contabilidade organizada” para apuramento da respetiva matéria coletável, detetara falhas nesse acompanhamento e indícios de subfaturação e fuga aos impostos. Não é referido que a IGF tenha proposto alterações às rotinas de acompanhamento desses contribuintes, ou auditorias fiscais àqueles que mostrassem indícios de evasão fiscal. Propôs, simplesmente, que se alterasse a lei, o Código do IRS, para impedir que este grupo de contribuintes pudesse livremente optar, como sucede atualmente, por possuírem contabilidade organizada.
Apresente-se um pouco de contexto para se perceber melhor o que está em jogo. Por “contabilidade organizada”, ou contabilidade empresarial, entende-se o sistema de informação que, gerido por um contabilista certificado, regista as vendas e ou prestações de serviços (os rendimentos) da empresa (profissional), bem como os dispêndios (gastos, despesas) suportados para gerar esses rendimentos. Por diferença entre os rendimentos e os gastos o sistema estima o resultado antes de imposto (genericamente, a matéria coletável), que será englobado com outros rendimentos do contribuinte para efeitos do cálculo do imposto (IRS) a pagar. Abstraindo da existência de eventuais “perturbações” exógenas – por exemplo, subfaturação dos rendimentos e ou sobrevalorização dos gastos – o sistema conduz a uma estimativa “real”, direta, do resultado obtido na prossecução da atividade.
Este regime de contabilidade organizada é obrigatório para os contribuintes com rendimentos brutos anuais superiores a 200.000 €, supletivo para os restantes, que têm o “regime simplificado” como opção base de tributação. Este último distingue-se do anterior regime por definir a matéria coletável de modo presumido, unicamente a partir do montante dos rendimentos (vendas e prestações de serviços) gerados. O código do IRS considera, no caso dos profissionais independentes, que 75% deste montante corresponde a lucro. Ou seja, que o contribuinte, independentemente da sua estrutura de negócio, incorreu num montante de gastos equivalente a 25% dos rendimentos.
Suponha-se um profissional independente que gerou serviços prestados no montante de 200.000 €, tendo incorrido em 100.000 € de gastos para prestar esses serviços. Se optou pelo regime de contabilidade organizada a sua matéria coletável (“lucro”) será de 100.000 €; porém, ascenderá a 150.000 € se estiver no regime simplificado. O volume de rendimentos é o mesmo em ambos os regimes, o que altera é o montante de despesas aceites fiscalmente como gastos para efeitos de cálculo daquela matéria.
O regime simplificado tem ainda uma outra consequência para o contribuinte. A proporcionalidade dos gastos relativamente aos rendimentos leva a que, para efeitos fiscais, a matéria coletável seja sempre positiva. Contrasta com o regime de contabilidade organizada, em que pode ser negativa (prejuízo), sempre que os gastos sejam superiores aos rendimentos, e se for o caso esse prejuízo pode ser deduzido aos lucros de um ou mais dos 5 anos seguintes.
A (desejada) proibição dos contribuintes poderem optar pelo regime de contabilidade organizada tem como objetivo último, pela parte da IGF, que a rentabilidade fiscal desses contribuintes (cerca de 7%) se aproxime da dos contribuintes do regime simplificado (cerca de 23%). O que, a ser aceite a proposta, é conseguido unicamente pela via da consideração de um plafonamento dos gastos da atividade.
Não se questiona a conclusão da IGF quanto à existência de subfaturação, nem tão pouco se coloca de parte um eventual empolamento dos gastos por parte dos contribuintes que optam pelo regime de contabilidade organizada, com vista a reduzirem (fraudulentamente) a matéria coletável. Situações que, a existirem, devem ser objetivamente combatidas e severamente punidas. O que se questiona é que a proposta daquela inspeção ao Governo tenha ido no sentido da “solução” mais fácil, para a AT, que é barrar o acesso à solução mais equitativa e mais de acordo com o princípio geral da tributação baseado no lucro real. Tal proposta é tão mais desajustada quanto, na atualidade, a AT tem um manancial de informação sobre a atividade dos contribuintes que, facilmente, lhe permite detetar e sinalizar para auditoria situações anómalas.
A fraude fiscal é uma realidade e uma calamidade para o país. Atue-se sobre a mesma, criando mecanismos de castigo que punam os comportamentos antissociais de cada contribuinte. E quando tiverem de ser implementadas soluções simplificadoras, que o sejam para todos. Não é o caso, na situação descrita. Por exemplo, por que razão os profissionais independentes com volume de atividade superior a 200.000 € terão direito a possuir um regime fiscal diferente? É por serem mais rentáveis para os cofres públicos do que os seus congéneres com menor volume de negócios?
Nunca, por nunca, deveria existir “solução” para atingir um determinado grupo de contribuintes, só porque este é fiscalmente pouco rentável. Mas é isso que parece estar subjacente à proposta da IGF.