António João Maia, Jornal i

Qualquer estratégia ou medida que seja adoptada dependerá sempre de dois elementos fundamentais. Vontade e força política para a mudança e contexto social e cultural propício.

No conto “o Rei vai nu”, Hans Christian Anderson socorre-se da inocência natural de uma criança para nos dizer que por vezes vivemos em negação. Que não vemos a realidade que está bem patente diante dos nossos olhos. Porque não conseguimos. Porque não queremos. Ou muito simplesmente porque nos “convencem” a vê-la de uma determinada forma.

Nesse conto, um vaidoso Rei deixa-se convencer por alfaiates impostores a usar uma roupagem única, feita de alegados materiais nobres e com cores exuberantes, cuja visibilidade estaria apenas ao alcance dos olhos dos mais capazes e dos mais inteligentes. E foi assim que, quando desfilava com tal vestimenta perante a multidão que aplaudia, rejubilava e comentava o esplendor de “sua majestade” e da sua maravilhosa roupagem, porque ninguém verdadeiramente queria dar parte de fraco, repentinamente uma criança exclamou – “Olha, olha! O Rei vai nu!”

Socorro-me desta estória para ilustrar a questão que hoje pretendo focar. A ética e a integridade na vida pública, sobretudo os (péssimos!) exemplos que vamos conhecendo ao nível das práticas das nossas elites e lideranças.

Efectivamente, como tenho referido noutras ocasiões, os últimos anos têm-se revelado férteis em suspeições, acusações e condenações por fraude e corrupção, envolvendo os mais elevados representantes de todas as esferas da nossa vida colectiva.

Desde o universo da política, onde pontificam ex governantes, passando pela vertente económica, com os exemplos de presidentes de bancos e de gestores de grandes empresas públicas e privadas, pelo sector cultural, onde se destacam os presidentes dos maiores clubes de futebol, ou pelo sector social, representado por exemplo por presidentes e gestores de entidades particulares de solidariedade social, ou ainda por áreas referenciais associadas aos pilares fundamentais da organização, funcionamento e estabilidade do Estado, como sejam a justiça, os militares e as policias, em todas conhecemos exemplos comprovados de práticas de fraude e corrupção, como atestam as acusações e condenações judiciais que têm sido mediatizadas.

Enfim uma fotografia de grupo nada abonatória, que deixa de fora poucos sectores da vida pública e que mancha e afecta profundamente, de forma absolutamente vergonhosa, a dignidade, a reputação e a respeitabilidade que é (deve ser!) própria das instituições em causa, fragilizando seriamente a sua reputação e credibilidade.

Afinal as instituições que tradicionalmente sempre se assumiram e foram vistas como exemplos fortes e inatacáveis, bastiões referenciais, sobre o que devem ser os padrões de ética e de integridade de um Estado e de uma sociedade, vêem-se beliscadas na sua honorabilidade, ficando fragilizadas aos olhos da opinião pública e do cidadão comum, menorizando ainda, como uma espécie de efeito colateral, todos aqueles que exercem condignamente as suas funções nas mesmas instituições.

Não acredito que em nenhuma das instituições em causa os funcionários e todos aqueles que de algum modo as servem sejam semelhantes nas suas atitudes e nas suas práticas. Creio até que, ao contrário, as instituições são servidas por funcionários que na sua maioria são pessoas decentes e integras. São gente de bem, como se diz. Mas é também certo (sempre foi assim e será!) que em todas as instituições existem pessoas menos bem formadas, que, como ratos gulosos em busca de pedaços de queijo, apenas se preocupam em identificar e explorar todas as oportunidades que lhes permitam retirar dividendos indevidos das suas funções em vez de se focarem, como seria suposto, em exercerem adequadamente, de forma zelosa e íntegra, essas mesmas funções.

É claro que estes perfis de menor integridade também podem estar associados aos dirigentes de topo das estruturas das instituições (governantes, presidentes, directores-gerais, gestores, administradores, etc.), como de resto se está a ver. Mas, deste ponto de vista, o que parece um sinal particularmente perturbador e porventura revelador de um ambiente bafiento, contaminado e pouco são (podre mesmo) é o facto de, nos últimos anos, um conjunto muito alargado de instituições referenciais da sociedade ter sido dirigido superiormente por pessoas com este perfil. Por gente deste “calibre”.

Será uma mera coincidência ou existirá de facto um contexto e uma dinâmica sociocultural mais propícia e facilitadora destas situações?

Estou mais inclinado para a segunda hipótese. Factores muitas vezes referidos, também eles fraudulentos, como os compadrios nas escolhas dos dirigentes de topo para a Administração Pública, nos processos que alguém um dia apelidou de “jobs for the boys”, ou na ausência de verdade e transparência na avaliação dos perfis de mérito, de valor e qualidade dos candidatos, ajudam por certo a encontrar pelo menos parte da resposta aquelas interrogações.

E ao olhar para este cenário do ponto de vista desta fotografia de grupo (uma verdadeira foto de um bando dos malfeitores) não possa deixar de ficar com uma certa apreensão sobre o sentido deste estado de coisas. Como chegámos aqui? Como vamos sair? Algum dia conseguiremos mudar? O que se seguirá?

E, tal como a criança do conto, questiono-me se o Rei, neste caso as instituições e sobretudo os nossos valores públicos – os valores republicanos – não estarão nus? Se não precisaremos todos de “um banho por dentro”?, como desabafou o Ega ao seu inseparável amigo Carlos da Maia, a propósito de um certo desencanto da sociedade burguesa do Portugal de então, que Eça de Queiroz retratou nos “Maias” e que foi pano de fundo de toda a sua magnífica obra.

Será bom e necessário que a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020 - 2024, documento agora em discussão pública, permita encontrar soluções e mecanismos concretos que ajudem à inversão destes sinais. Mas qualquer estratégia ou medida que seja adoptada dependerá sempre de dois elementos fundamentais. Vontade e força política para a mudança e contexto social e cultural propício. Se estes factores não existirem, e eles não têm estado presentes nem se criam de um dia para o outro, sobretudo o segundo, dificilmente se farão grandes mudanças neste estado de coisas.

A propósito desta problemática, o Observatório de Economia e Gestão de Fraude publicou recentemente, através da Almedina, a obra Ética e Integridade na Vida Pública, composta por diversos artigos de autores de referência no plano académico e também no plano técnico-profissional sobre as temáticas em causa, no que constitui um contributo importante para alertar consciências e sugerir propostas de trabalho para o reforço da ética e da integridade na vida das nossas instituições e da nossa vida colectiva.

E os resultados do recente estudo sobre o Índice da qualidade das elites 2020 ajudam a perceber um pouco melhor o que valem as nossas elites, na medida em que elas serão sempre também um factor de mudança de enorme importância.