Óscar Afonso, Expresso online (080 15/07/2020)

Não há dúvida que a Covid-19 invadiu as nossas vidas. De repente, sectores inteiros viram a sua faturação reduzir-se a quase nada e a incerteza continua imensa, seja quanto à existência ou não de réplicas, seja quanto aos efeitos sobre as economias ou ainda quanto ao impacto sobre os indivíduos. Mesmo sem novas réplicas de forte intensidade, já sabemos que, em termos económicos, os efeitos já serão brutais e desiguais entre países e indivíduos.

No contexto europeu, em termos de países, espera-se que os países do Sul, economicamente mais frágeis, sejam os mais atingidos pelo choque. De acordo com as últimas previsões da Comissão Europeia, espera-se que, por exemplo, a economia alemã contraia 6,3% ao longo de 2020, mas que a grega contraia 9,0%, a portuguesa 9,8%, a espanhola 10,9% e a italiana 11,2%.

Para amortecer tamanho choque, os governos têm vindo a implementar medidas e a anunciar apoios económicos significativos. O objetivo é evitar falências, preservar empregos, apoiar os mais vulneráveis e manter a estrutura da economia. Este “investimento”, aliado ao aumento dos gastos públicos resultantes dos chamados estabilizadores automáticos e à diminuição da receita tributária, vai ter naturalmente um impacto orçamental enorme.

Sobretudo devido à fragilidade das economias do Sul, já demasiado endividadas e menos produtivas, a resposta europeia à crise só poderia ser coletiva. Os governos precisarão de financiar os ‘deficits’, ou seja, necessitarão de se endividar em grande escala e, pelo menos para os países mais endividados (como Grécia, Itália, Bélgica, França, Espanha ou Portugal onde o endividamento público ultrapassa 100% do PIB) seria praticamente impossível resolver o problema individualmente sem colocar em causa o processo de integração europeia – ficariam expostos aos mercados financeiros. Na verdade, a ausência de uma resposta coletiva colocaria o euro em risco e reforçaria movimentos xenófobos e antieuropeus, aumentando a pressão para, no limite, a desintegração europeia.

Perante a reduzida dimensão do orçamento europeu e a limitada capacidade financeira do Banco Europeu de Investimento e do European Stability Facility, agravada pela condicionalidade dos empréstimos concedidos por este último, a resposta imediata veio do Banco Central Europeu (BCE), que apresentou medidas importantes para facilitar o financiamento das economias. Todavia, a resposta não poderia ser apenas monetária, mas simultaneamente monetária, fiscal e, a médio prazo, estrutural, mantendo ainda a inflação sob controlo para garantir a competitividade da Europa, como previsto nos Tratados.

Alguns instrumentos “novos” para atuação comum foram, entretanto, criados e discute-se agora, para uma resposta de maior fôlego à crise, um Plano de Recuperação para a União. Neste prevê-se que a Comissão Europeia possa financiar-se nos mercados internacionais, utilizando depois os recursos obtidos, por via de subvenções e empréstimos, através dos programas constantes do Quadro Financeiro Plurianual. Não se tratando ainda de uma mutualização da dívida, ajudará a ultrapassar os problemas que acima referi.

Sem pretender discutir as razões que tornaram os países do Sul economicamente mais vulneráveis, desejava medir o que agora está em causa. Para o efeito, dividi os países europeus em dois grupos, o do Norte rico e preparado e o do Sul mais pobre e vulnerável, e defini dois cenários. No cenário 1 espera-se que os países do Norte possam, internamente, salvar os seus “campeões industriais” e garantir empréstimos bancários a empresas menores, algo que os países do Sul não podem fazer. No cenário 2, assume-se que a Comissão Europeia tem a intenção de combater as desigualdades territoriais através de um orçamento mais forte e um fundo de recuperação para garantir apoio relativamente mais significativo às regiões mais pobres.

A análise dos cenários levou, naturalmente, em conta que o quadro para a definição e implementação de políticas macroeconómicas mudou significativamente com a aceleração da globalização e o aprofundamento do processo de integração. Os governos perderam – ainda bem – os instrumentos de política monetária, que passaram a ser de responsabilidade do BCE, e as políticas orçamentais foram restringidas por regras destinadas a evitar ‘deficits’ públicos excessivos. A necessidade de disciplina foi ainda reforçada pelas regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento, que asseguram a regra do equilíbrio do orçamento público a médio prazo.

Em termos de política orçamental, os governos têm, como principais instrumentos, impostos, subsídios e gastos públicos, embora de uso limitado. Como os gastos em I&D são incentivados e o lado produtivo da economia foi severamente afetado, considera-se que, para promover a recuperação, os governos devem conceder subsídios à inovação e aos sectores realmente competitivos.

No caso da política monetária, os bancos centrais têm, como principais instrumentos, a emissão de moeda e a redução da taxa de juro nominal, ambas afetando a quantidade de moeda que circula nas economias. Como a emissão de moeda tem pouco efeito no longo prazo e causa inflação, enquanto a segunda opção estimula o crédito e, portanto, o consumo e o investimento, considera-se que a política monetária se materializa na orientação da taxa de juro nominal.

A análise desenvolvida revela que o cenário 1 amplia as desigualdades Norte-Sul; i.e., a distância entre os países em competitividade e bem-estar social. Por sua vez, o cenário 2 promove um maior equilíbrio ou coesão territorial entre os países. De qualquer forma e seja o que vier a acontecer, o choque da Covid-19 impôs enormes perdas no curto e médio prazos. Além disso, mesmo que o cenário 2 venha a dominar, o que duvido, a UE deve exigir que o Sul se torne definitivamente menos vulnerável e mais sustentável.

Por outro lado, em termos individuais, intra-país, verifica-se que quem trabalha no sector privado tenderá a perder mais com o choque, uma vez que opera maioritariamente em atividades que requerem presença física. Diferenças assinaláveis entre os sectores público e privado podem comprometer a coesão económica e social intra-país a curto-médio-longo prazo.

Assim, intra-país, a crise evidencia o papel crescente do sector público, para onde são canalizados todos os impostos e contribuições, devendo agora, face a isso, assegurar a equidade, garantir direitos básicos e igualdade de oportunidades, promovendo o bem-estar e a coesão social para todos. O ritmo de recuperação e de coesão social dependerá das políticas adotadas durante a crise que compensem a paragem. Se as medidas assegurarem que os trabalhadores não perdem postos de trabalho, que as empresas não se desmoronam e que as redes económicas e comerciais são preservadas, a recuperação será mais rápida.

Note-se também que a queda da produção e em diversos serviços (caso do turismo), não foi causada pela procura, mas foi uma consequência inevitável das medidas destinadas a limitar a propagação da doença. Assim, inicialmente, o papel da política económica não deve ser o de estimular a procura agregada, mas o de consertar a oferta – o sector produtivo privado –, garantindo o funcionamento da máquina produtiva e evitando perturbações económicas excessivas.

Posteriormente, serão necessárias medidas de política adequadas para estimular a recuperação dos rendimentos das famílias e das empresas mais afetadas. Só desse modo o aumento do diferencial salarial entre a função pública e o sector privado observado na sequência do choque será corrigido e se promoverá a coesão económica e social no seio dos países.