Carlos Pimenta, Dinheiro Vivo (JN / DN)
Como é possível que um governo que mantém leis que permitem a existência de offshores pode combater a sua existência?
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Ao longo da meia centena de crónicas da nossa responsabilidade sobre a fraude, neste vosso jornal, iniciadas pouco depois da publicação do meu livro Os offshores do nosso quotidiano (não porque a generalidade dos cidadãos do mundo os utilizem alguma vez mas porque pagamos e sofremos as consequências da sua existência) várias são as que versaram sobre esse assunto: as quatro primeiras e duas outras posteriores foram dedicadas a diferentes aspectos da Zona Franca da Madeira ꟷ sobre a qual a União Europeia levantou a suspeição de que não visa essencialmente o desenvolvimento económico daquela região, mas, segundo o ex-deputado europeu que acompanhou o processo, colega do OBEGEF, a «montanha pariu um rato»: a autorização da sua existência foi renovada até 2027, com reuniões da UE com o governo, que deliberadamente não tem a maioria da direcção daquela, e «inspecções» periódicas ꟷ e nas quase últimas percorremos, com o apoio da Tax Justice Network, alguns dos principais offshores actuais como Caimão, EUA, Suíça, Holanda, Luxemburgo.
Nesta crónica retomamos o assunto, essencialmente para mostrar que consideramos que o futuro da humanidade depende em grande medida da posição que assumirmos sobre o assunto.
Em primeiro lugar, um sistemático elemento de referência quando tratamos da fraude deve ser a ética. As violações da ética vigente numa dada sociedade (as intencionais e que envolvem encobrimento e engano é identificável como fraude ), que podem tender para a sua degradação espontânea: “se os outros roubam porque eu não hei-de roubar”, é uma frase que surge e que o demonstra inequivocamente. Assim sendo pode haver fraudes legais, apenas justificáveis por três vias possíveis: falta de leis, leis mal elaboradas ou leis que visam criar um espaço legal para as violações da ética.
É nesta última possibilidade que enquadramos a existência de offshores.
Ora como é possível que um governo que mantem leis, de forma deliberada ou por razões ideológicas, que permitem a existência de offshores pode combater a sua existência? Como diz o povo "Quem tem telhado de vidro não atira pedras ao do vizinho."
Em segundo lugar, é verdade que os acordos de troca automática de informações, promovidos pela OCDE ꟷ antes eram só as trocas a pedido ꟷ têm aumentado o conhecimento do que se passa em offshores
"quase 100 países realizaram o intercâmbio automático de informações em 2019, permitindo às autoridades fiscais obter dados sobre 84 milhões de contas financeiras detidas em offshores pelos seus residentes, cobrindo um total de ativos de 10 biliões de euros [10.000.000.000.000 €]”
e, em alguns casos, tem dificultado o branqueamento de riqueza, mas de forma manifestamente insuficiente como o demonstra inequivocamente o facto dos EUA não prestarem informações do que se passa nas suas fronteiras. Além disso estamos a falar de uma rede vastíssima de paraísos fiscais, quase todos eles sem fiscalizações e regulações adequadas, o que permite, com muitos «facilitadores» e corruptos encobrir a verdadeira propriedade dos bens.
Simultaneamente há forte concordância, embora longe da unanimidade, de combater o branqueamento de capitais de origem criminosa ou das grandes fraudes. Poucos discordarão de combater severamente o dinheiro proveniente da droga, do armamento e mercenários, do tráfico de seres humanos e da lista imensa, hedionda, de outros crimes. Ora combater este branqueamento, que permitirá depois de realizado, aproveitando a falta de liquidez da economia nos diversos países, controlar os sectores nevrálgicos da economia em que todos nos inserimos. Afirmar algo como
“Contudo o tempo tem vindo a demonstrar que a luta contra os abusos cometidos à sombra das leis permissivas que, por regra, regem a vida económica e financeira de tais territórios [paraísos fiscais], não se faz promovendo algo muito difícil, senão impossível, como é a sua extinção.”
é, não só, «colaborar» com o crime como reforçar as desigualdades e a prepotência do capital dominante, contribuir para o agravamento das desigualdades sociais, a que o Papa Francisco tem vindo tão veemente a condenar.