Mário Tavares da Silva, Expresso online (079 09/07/2020)
Por vezes, acontece, sem que percebamos muito bem porquê. Perante as mais imprevisíveis e triviais situações, ficamos sem jeito, siderados numa só palavra. Não sabemos mesmo o que dizer ou, pelo menos, não sabemos como o dizer.
Foi isso que precisamente me sucedeu há uns dias e, certamente, já terá sucedido com muitos dos meus estimados leitores, sobre os mais diversos assuntos relativamente aos quais se julgam autoridades na matéria.
Fiquei literalmente sem chão, derrapando como se por cima de um tapete de óleo me encontrasse e, por momentos, duvidei sobre o que afinal sabia e não sabia sobre estas coisas da corrupção e da fraude.
Pela primeira vez, a minha qualidade de cronista era questionada… e logo pelo meu próprio filho…
Mas estava escrito e, um dia, tinha de acontecer…
Preparava-me, nessa semana, para escrever mais uma pequena crónica quando o meu pequenote, de quase metro e meio (faltam apenas 10 cm segundo a última marcação efetuada na parede da cozinha), se aproximou, pé ante pé, da minha mesa de trabalho em que tantas horas tenho passado e, sorrindo matreiramente, atirou, sem dó nem piedade: #Pai, mas afinal o que é isso da corrupção? Deve ser mesmo uma coisa muito complicada para todas as semanas teres tanto para escrever…"
Engoli secamente e respirei fundo.
Ora aí estava uma questão que jamais imaginei poder vir de um miúdo com 10 anos…
Fiquei desarmado, logo eu, pensei, que tanto escrevo sobre estas coisas, tantas e tantas vezes…
Apesar disso, não vacilei…
Era aliás, pensei, a última coisa a que me podia dar ao luxo…
E logo perante o meu filho.
Recomposto, retribui-lhe o sorriso maroto e procurei, atabalhoadamente, uma resposta adequada à sua curiosidade….
Sabes filho…esta coisa da corrupção é como um dos jogos da tua consola, em que umas vezes se ganha e outras se perde. E, por vezes, nem uma coisa nem outra, pois fica tudo na mesma. No final do dia, rematei, agora sim mais confiante, o importante é jogar sempre o melhor que se conseguir e esperar que as vitórias sejam cada vez mais em maior número que as derrotas…
Fez-se um silêncio…
Por momentos, julguei que o convencera…
Sorriu de novo e, sentando-se no meu colo, retorquiu…
Queres dizer então papá que de cada vez que escreves uma crónica, há pelo menos um corrupto que muda de vida e deixa de o ser…É isso?, interpelou-me ele, como se de um especialista na matéria se tratasse.
É mais ou menos isso meu filho, respondi-lhe, continuando a teclar no computador como se as palavras, estranhamente, me quisessem fugir e eu nada pudesse fazer para o evitar…
Este pequeno episódio retrata bem o quão difícil se torna, por vezes, tratar destas coisas de forma simples e que todos, incluindo as crianças, o percebam.
É evidente, sejamos claros, que não tenho a pretensão de que uma criança com 10 anos leia uma destas crónicas e perceba o que aqui se diz. Mas tenho (e julgo que todos devemos ter) a genuína vontade de pensar e de criar as condições mais adequadas a que desde cedo, possam crianças como o meu filho e os filhos de tantos outros pais perceber a importância de sermos honestos, íntegros e retos nos nossos comportamentos, nas nossas atitudes, na nossa forma de ser e de estar, quer em sociedade quer nos nossos afazeres profissionais.
Há que simplificar o discurso, tornar estes temas tão apelativos como, por exemplo, uma das muitas séries de banda desenhada que pululam pelo canal panda.
É um dever de todos, sem exceção, educar os mais novos, desde tenra idade, para uma cidadania proba e responsável.
Lembrei-me, a este propósito, de uma espécie de corrupção aos “quadradinhos”, ao estilo dos icónicos e marcantes livros do Zé Carioca, da Mafaldinha, do Cascão ou, porque não, do saudoso Tio Patinhas, capazes de atraírem os mais novos para estes temas e de os motivarem, desde cedo, com uma história, para a compreensão destes fenómenos, preparando-os para que também eles possam, um dia, ser difusores das melhores práticas e, dessa forma assegurarem a transmissão do conhecimento às gerações futuras.
Temos que ser capazes de criar um verdadeiro lastro geracional de boas práticas, capaz de cerzir o que de melhor nos ensinaram e o que de melhor temos para ensinar aos outros.
E não nos iludamos, pois é tarefa exigente e que a todos convoca.
Ainda que tivéssemos, o que em grande parte infelizmente não sucede por fenómenos recentes e por todos conhecidos, os melhores códigos, as leis mais perfeitas, os mais sofisticados planos de gestão de risco de corrupção, os mais competentes gabinetes de auditoria interna, os mais insuspeitos auditores externos, os mais preparados auditores públicos, isso não seria o suficiente para mudar o curso da História.
Na realidade, nada disso nos servirá se não tivermos a capacidade e a determinação para melhor preparar as nossas crianças e os nossos jovens para uma vivência eticamente irrepreensível e exemplar.
Creiam-me, pois, que talvez assim a corrupção aos “quadradinhos” não passasse disso mesmo. Um livro de histórias simples e trivial, a ser lido por crianças de todas as idades, e sem qualquer relação com a realidade.