Pedro Moura, Expresso online (077 24/06/2020)

Nem de propósito, tenho lido algumas obras sobre a estória da Europa durante o século XX, e é fácil de constatar que foi uma verdadeira viagem de montanha russa, com um conjunto de mudanças, tragédias e sucessos que o mais imaginativo dos autores teria dificuldade em conceber.

Os múltiplos movimentos sócio-políticos e ideológicos, as imensas reconfigurações de fronteiras e poderes estatais, a própria emergência do Estado-Nação enquanto forma privilegiada de organização nacional e internacional, os movimentos massivos de deslocação e homogeneização de populações, o horror da guerra e, sobretudo o advento de um período prolongado de paz e melhoria de qualidade de vida dos cidadãos, a União Europeia e a promessa de um espaço e identidade supranacional que convivesse de forma sã com as especificidades e identidades nacionais, corrigindo assimetrias e assegurando a liberdade, o ‘modelo Europeu’ que, com todos os seus defeitos e problemas é ainda visto pela maior parte do mundo como o melhor exemplo de civilização existente.

Esta é a Europa que eu recebi, é a Europa em que eu quero viver, é a Europa que eu cada vez mais receio estar a erodir-se e a escapar-nos às mãos de perspetivas e atitudes miópicas, interesseiras e egoístas, assentes numa amnésia seletiva dos horrores que o esboroar do projeto europeu pode trazer.

Sim, há enormes problemas na Europa / União Europeia. As crises mais recentes têm trazido ao de cima uma incapacidade sistémica de resolver os problemas de sustentabilidade financeira e económica em conjunto. Atirar dinheiro para cima dos problemas resolve-os no curto prazo, mas cria debilidades que se irão revelar (e ter de pagar mais adiante). Percebe-se a falta de solidariedade dos países mais ricos em relação aos mais pobres. Há razão de ambos os lados.

Mas do que não nos podemos nunca esquecer é que a desunião e o risco de colapso do projeto europeu trará talvez não a guerra bélica e milhões de mortos que devemos ter bem presentes na nossa memória, mas garantidamente trará um empobrecimento generalizado do continente, um agravar ainda maior das desigualdades económicas já sentidas (não só entre países, mas sobretudo dentro dos próprios países), e provavelmente muitos milhões de pessoas e famílias que passarão a ter uma vida bem pior que a geração anterior.

Imagine-se a luta contra as alterações climáticas numa Europa fragmentada. Qual a probabilidade de sucesso, quando este é um problema que não se resolve ao nível de um país? Imaginam-se as tensões e implicações de fenómenos de seca extrema, subida abrupta do nível das águas do mar ou tropicalização de partes do continente? Estariam mesmo cenários de guerra real assim tão longe? A História (não só a do séc. XX) é bem clara sobre este tipo de situação.

Outro tema para o qual é também fundamental uma lógica supranacional é a adaptação a um mundo de livre circulação de capitais e à divergência progressiva entre os rendimentos de capital e de trabalho, um fenómeno que tem criado uma erosão dos rendimentos da classe média e um sifonamento de capital para o top 1%. Estes fenómenos agudizam-se ainda na deslocalização progressiva da função trabalho para outros países (fruto da ‘globalização’), que tem criado pressões ao nível do desemprego, sobretudo das populações menos qualificadas. As tensões sociais que daqui advêm criam terreno fértil para o crescimento de fenómenos políticos populistas (não só de direita, mas também de esquerda), que naturalmente ameaçam a coesão nacional e europeia e as próprias liberdades a que nos habituámos. Cada país pode tentar gerir estes fenómenos isoladamente, mas mais uma vez, considero ser fundamental complementar a gestão nacional destes problemas com uma lógica supranacional, europeia.

Para dar três exemplos de outros temas que se enquadram aqui como tendo imenso a ganhar com uma abordagem europeia:

- Fronteiras e Livre circulação de pessoas: uma das principais marcas distintivas do projeto europeu para os cidadãos, e um enorme garante da identidade europeia. Será muito fácil, como bem nos apercebemos com a situação da covid-19, esta enorme conquista civilizacional cair às mãos das atitudes de alarme nacional. É necessário reforçar esta conquista, e não permitir que seja usada para gerir populismos e alarmismos;

- Paraísos fiscais e offshores: sendo a própria UE responsável por muitos destes casos (ver mais aqui) tem mesmo assim vindo a desenvolver um trabalho de regular a circulação de capitais através destes locais por forma a mitigar o desvio de capitais, o não pagamento de impostos devidos e o financiamento de atividades de índole ilegal e a alta corrupção. Mesmo tendo em conta a insatisfação com os resultados alcançados com uma supervisão a nível europeu destes fenómenos, imagine-se uma abordagem meramente nacional;

- Taxação de empresas globais: a capacidade de a União Europeia funcionar como bloco negocial é fundamental para fazer frente aos gigantes impérios empresariais que atuam por todo o planeta, criando receitas sem precedentes no passado por todo o mundo, mas não pagando impostos nos locais de onde extraem esse rendimento (alguém imagina a Google, Facebook ou Amazon a pagar ao Estado português impostos dos rendimentos obtidos em Portugal?). Grande parte da economia hoje passa por circuitos de fluxos financeiros não controláveis pelos Estados, logo de difícil taxação. Logo, a carga fiscal sobre as populações (trabalho e consumo) tem de aumentar, criando dificuldades quer sobre os cidadãos, quer sobre as empresas, dificultando as condições de vida e competitividade locais. A dimensão da União Europeia faz com estes mamutes tecnológicos nos ouçam.

Concluo afirmando perentoriamente que é necessário que aqueles que acreditam na Europa, que se sentem não só cidadãos do seu país mas também cidadãos europeus, façam ouvir a sua voz em defesa do projeto europeu. Como dizia Churchill sobre a democracia, pode ser a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos a tempos’.

O projeto europeu pode não ser perfeito, mas não conheço outro melhor. Os europeus têm um longo histórico de enfrentar adversidades. Mas foi quando as enfrentaram em conjunto que os melhores resultados surgiram, e que a Europa realmente se afirmou enquanto projeto civilizacional exemplar.