Carlos Pimenta, Expresso online (076 17/06/2020)
Em 2008 foi apresentada a primeira cripto moeda, por um ou vários indivíduos sob o pseudónimo Satoshi Nakamoto: o bitcoin.
Aparecia assim a primeira moeda digital, mundial, descentralizada e suficientemente robusta do ponto de vista tecnológico, pela utilização do blockchain, uma base de dados em que consta a propriedade de cada um e as operações realizadas, cuja segurança é dada pela sua descentralização de armazenamento (pelos “mineiros”). Quando há um pedido de transacção esta informação é transmitida a todos os computadores (ou conjuntos agrupados de computadores) da rede ligados entre si ponto a ponto (P2P). O conjunto desses computadores cria um índice global, o que lhe permite em conjunto e de forma descentralizada (sem ser por intermédio de terceiros) validar a transacção, através da utilização de algoritmos. Então a operação realizada é combinada com outras operações dando lugar a um «bloco de dados» que se vai adicionar aos já existentes. A sequência de blocos constituídos manter-se-á permanentemente e inalteráveis graças à inviolabilidade dos sistemas de criptografia de chave pública e privada (esta só conhecida pelo proprietário).
A impossibilidade da sua violação ꟷ já tentada múltiplas vezes ꟷ assente na irreversibilidade matemática de algumas operações e na capacidade computacional existente, não exigindo qualquer intervenção pública, cuja cotação depende exclusivamente da oferta e procura, granjeou-lhe grande popularidade.
A criptomoeda apareceu no início de uma crise económica em época de financiarização (isto é, de elevada percentagem do PIB associada ao capital fictício) em que o Estado demonstrou toda a sua incapacidade de acção ao serviço do bem comum, resultante da sua ideologia, da sua burocracia, da sua tendência classista de apoiar todo o processo de transferência dos mais pobres para os mais ricos, eventualmente da corrupção, em que, com a excepção da Islândia, cada problema num banco é frequentemente classificado como uma «crise sistémica», exigindo a transferência de recursos da sociedade para ele.
Tínhamos então vivido cerca de duas décadas em que “nos mercados excessivamente desregulados, produz-se uma lei de Gresham de grande amplitude, de dimensão macroeconómica: o mau capitalismo afasta o bom capitalismo; os maus capitalistas caçam os bons capitalistas. A curto prazo o «mau» é sempre mais lucrativo, pelo menos para os seus conceptores. No meio termo ele é sempre destrutivo do interesse geral. As fraudes podem influenciar significativamente o funcionamento dos mercados. Da desregulação à predação, por vezes criminal, vai apenas um passo. O ambiente criminógeno que conduziu (…) à crise pode resumir-se em três situações: falta de regulação, ausência de supervisão e descriminalização. Estes três aspectos estão no coração da crise”.
Mais, essa crise, com a reinante falta de liquidez (como em todas as crises), reforçava a entrega da economia legal às organizações criminosas, com a possibilidade prévia para realizar o branqueamento de capitais.
O prestígio de uma nova moeda sem Estado, anónima e resiliente a qualquer ataque fez com que as criptomoedas se multiplicassem, havendo hoje mais de 6000 (em constante crescimento), todas elas com a fama das suas características.
Contudo nas fraudes informáticas o problema principal não é a tecnologia mas o comportamento das pessoas. Aqui esse problema também se mantém, para além do mais por duas razões fundamentais:
a) Muitas vezes, quase sempre, as operações em criptomoedas não são realizadas pelo próprio mas por uma instituição intermediária. Essa intermediação é a via mais acessível para o utilizador comum e a garantia de que a não perda da chave privada faz perder todo o dinheiro possuído ou para permitir expressar as criptomoedas em formas de pagamento habitual. Contudo por esta via há muitas «viagens» possíveis para a chave privada, várias instituições e intermediações sem qualquer tipo de controlo, todo um vasto campo aberto aos defraudadores.
b) A imposição social das criptomoedas faz-se pela generalização da sua utilização nas operações de pagamento tornando-as uma forma de pagamento habitual, como o cartão de crédito; tal exige uma grande diversidade de software, em múltiplas plataformas, de variegadas empresas e programadores.
De facto a “segurança de bitcoin requer uma mudança cultural. Não estamos acostumados a guardar informação digital com segurança. Temos milénios de experiência com a segurança física (chaves, cadeados, baús, cofres), mas apenas alguns anos ou décadas com a digital. Felizmente, com o bitcoin é possível realizar backups e guardá-los tanto digitalmente quanto fisicamente.” E muitos são os acontecimentos demonstrativos desta realidade, conhecendo-se alguns casos caricatos e históricos: em 2013, um cidadão jogou no caixote do lixo um disco rígido que continha a sua carteira de moeda electrónica ꟷ e chave privada ꟷ com 7500 bitcoins, equivalente na altura a 4,7 milhões de dólares.
Muitas vezes os termos"bitcoin", “criptomoeda” e "moedas digitais" servem como isca para enganar incautos. Foi, por exemplo, o que aconteceu com «a moeda» One Coin, uma «moeda» em que se prometia grande lucratividade mas que mais não era que um esquema de Ponzi, tendo conseguido obter cerca de 4 mil milhões de dólares.
Mas será que as criptomoedas são mesmo moedas?
O que é ser moeda? Antes do mais é ser equivalente geral
“a moeda existe porque há uma divisão social do trabalho, alicerçada em produtores independentes-dependentes, que já atingiu um grau de desenvolvimento tal que inviabiliza as formas embrionárias de relacionamento entre os referidos produtores, ou no interior de cada um deles, entre diferentes proprietários. Quer isto dizer que a mercadoria e a moeda têm a mesma razão essencial de existência e que a partir de determinada fase histórica a relação produção/troca inerente ao valor assume a forma de relação mercadoria-moeda, em que os seus elementos, apesar de apresentarem uma autonomia relativa, só existem enquanto elementos da relação. Quer dizer igualmente que a moeda também é uma relação social de produção, acrescida de dois traços específicos: se manifesta na troca e preenchendo um conjunto de funções.”
Estas funções são: medida de valor, meio de circulação e de entesouramento, as quais permanecem na fase vivida de financiarização, típica do período posterior aos anos 80 do século passado, incluindo, pois, o período das criptomoedas.
Vejamos agora em que medida é que a bitcoin preenche actualmente as funções da moeda.
O facto de não ser convertível em toda e qualquer forma de moeda, não se integrar plenamente no sistema monetário internacional e não ser aceite por países e empresas como forma de pagamento de mercadorias ou dívidas fazem com que não seja um equivalente geral. Não preenche plenamente a função de meio de circulação.
A sua grande oscilação de cotações (ao longo da sua história: deUS$1 = 1.309,03 BTC na sua primeira operação a pouco menos de1BTC = US$200 em Janeiro de 2013, atingindo seis vezes mais em um mês e entrando em aumentos sucessivos até US$19.382 em 17/12/17. Actualmente vale cerca de US$9.400. Nos últimos 5 dias teve oscilações de cotação em dólares de 7%, que corresponde a cerca de 700 dólares. Tudo isto significa uma muito reduzida capacidade de ser medida de valor.
Consequentemente, se o entesouramento é uma procura de moeda enquanto moeda, também esta função fica por cumprir.
A bitcoin (e as outras criptomoedas) pertence mais ao mercado financeiro (capital-fictício, usura) que ao mercado monetário. Têm razão os reguladores de diversos países ao assumirem esta posição, muitas vezes de forma tímida e inoperacional.
Mais, as criptomoedas são hoje uma forma segura de realizar o branqueamento de capitais.
Tal não significa o abandono das criptomoedas, mas naquilo que são e a sua utilização, exigem uma fiscalização efectiva e adequada.
Sobre o assunto ver
* Gayraud, J.-F. (2011). La Grande Fraude. Crime, Subprimes et Crises Financières. Paris: Odile Jacob. * Pimenta, C. (2004). Globalização: Produção, Capital Fictício e Redistribuição. Lisboa: Campo da Comunicação. * Pimenta, C. (2018). Apontamentos sobre a bitcoin em O Capital. In C. Bastien & J. V. Fagundes (Eds.), O Capital de KARL MARX 150 anos depois (pp. 325/358). Coimbra: Almedina.* Pimenta, E. (2018) Bitcoins ou Offshores?, Visão online, in obegef.pt/wordpress/?p=35341 * Ramamoorti, S., & Khalil, M. (2020). Fraudsters are Exploiting Blockchains and Digital Currencies. Fraud Magazine, 35(3). * Ulrich, F. (2020). Entendendo os riscos e a segurança do bitcoin,https://www.infomoney.com.br/colunistas/moeda-na-era-digital/entendendo-os-riscos-e-a-seguranca-do-bitcoin/* Urgelés, J.-V. G. (2016). Matemáticos, Espiões e Piratas. National Geographic, Edição Especial, 144.