Carlos Pimenta, Expresso online (070 06/05/2020)

“(…)

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

- Sei que não vou por aí!”

(José Régio. Cântico Negro)

Para muitos órgãos de informação o mundo desapareceu e só existe o coronavírus. Uma pandemia em que o número de mortos são números mais relevantes que os curados ou sem grandes impactos no organismo, em que as dificuldades no seu tratamento pesam muito mais que a abnegação de muitos, em que os números absolutos têm mais impactos que os relativos e per capita[i]. Ninguém nega que é um problema muito sério, não só do presente mas também do futuro. Que teve, tem e terá grandes impactos no funcionamento da sociedade. Certamente no funcionamento da produção, da partilha dos rendimento, na troca e no consumo (que designamos sintética e imprecisamente por «economia»), mas também em todos os aspectos da actividade do homem à escala global (eventualmente designável por «cultura», eventualmente expresso de forma mais desagregada: «comportamentos», «relacionamento  humano», «política», … ).

Limitados pelo imenso desconhecimento sobre as temáticas em confronto[ii], teceremos algumas considerações sobre alguns dos aspectos do período que temos vivido e lançaremos meras pistas do que pode acontecer no futuro sobre a fraude, a qual, obviamente, é parte integrante do que se passar nas relações sociais (eventualmente o mais determinante) e no foro psicológico de muitos de nós. Suficientemente genéricas quer porque continuando a existir o tempo de projecto (organizar os nossos actos em função do que queremos do futuro) o tempo circular (sequência determinada pelo passado) aumentou de importância, quer porque hoje sabemos que uma variação infinitesimal pode alterar profundamente o rumo dos acontecimentos de um longo amanhã. Vivemos hoje sobre conflitos e contradições (ex. importância do Estado-nação e universalidade dos problemas a resolver; o primado do homem, na sua saúde e futuro, e o do rendimento e riqueza no quotidiano, no presente) que podem arrastar variações futuras no funcionamento das sociedades (desde a validade dos espaços supranacionais às prioridades humanas, para nos referirmos a poucos exemplos) que fazem com que tal não seja uma mera afirmação matemática.

Permitam-me, antes de avançarmos, falarmos um pouco sobre a utilização da palavra «crise», frequentemente adjectivada de «económica», utilizada para desenhar a situação que já vivemos, e que será o nosso principal problema. Em termos estatísticos é etiquetável dessa forma: corresponde a uma diminuição do produto nacional durante alguns trimestres. Contudo nada tem a ver com as habituais e frequentes crises do capitalismo (englobando nestas também as diminuições do crescimento, habitual e desejado, produto interno, como aconteceu na Europa depois da II Grande Guerra). As crises do capitalismo são resultado de uma sobreprodução (ou subconsumo) geradora de quebra da taxa de lucro, mas esta não. Também é completamente diferente dos períodos seguintes aos conflitos militares, em que há que reconstruir o que foi destruído. Assim sendo como é possível fazer comparações com a crise de 2008? Como é possível prever, e promover, um agravamento das desigualdades humanas, quando o homem surge hoje como o «centro da razão de existirmos»? Como é possível intensificar o crédito e, simultaneamente, privilegiar a centralidade dos bancos? Como é possível associar o aumento do dinheiro disponível ao «ir aos mercados» (típico apenas da fase de financiarização da economia), com os conhecidos efeitos nefastos de controlo económico e político dos Estados?

Salientemos alguns aspectos da nossa vivência no passado recente eventualmente relevantes para a nossa análise.

  1. Revelou-se inequivocamente a (inter)dependência entre todos nós, tornando evidente que o Homem é um ser social. Quebrou-se totalmente a visão existente do individualismo solipsista, embora este possa ter continuado presente no foro íntimo de muitos. A minha actuação deve ter em atenção os outros e o comportamento destes considera e condiciona a minha existência. A força do inter-relacionamento constituiu prática social efectiva podendo funcionar como gérmen de uma nova ética social vigente.

Se isto é inequivocamente verdade também o são os actos pouco dignos da relação humana como, por exemplo, o açambarcamento de certos bens ou algumas expressões de «racismo». Também é sabido que durante este período de confinamento domiciliário e dependência da internet aumentou bastante a ciberfraude e o cibercrime, como sempre que há acontecimentos de impacto mundial[iii],aproveitando o analfabetismo digital, a fragilidade e dependência tecnológica. A concentração da atenção nos problemas sanitários diminui a atenção sobre as actividades ilegais  (parcialmente patente na subida de preço do ouro, criptomoedas e pedras preciosas) que faz com que a criminalidade organizada diversifique as actividades para manter os lucros. O branqueamento de capitais[iv] continua a contar com o apoio de alguns Estados (offshores[v]) e a corrupção de muitos outros, encontra novas possibilidades (ex. criptomoedas), e explora as dificuldades económicas de uma parte do sistema bancário, esperando aproveitar a falta de liquidez do período subsequente.

  • A importância do Estado na nossa sociedade e na capacidade de superar os problemas que actualmente vivemos (em claro conflito com a soberba científica da sapiência actual) revelou-se inequivocamente. A ideia anteriormente dominante do Estado mínimo, tendencialmente nulo se possível, revelou-se errado, quanto o foi a capacidade nula de um planeamento estratégico na saúde, no saber e na cultura, (apesar de organizações internacionais terem alertado para a possibilidade do que se veio a verificar). O descontrolo registado na Europa neste aspecto é hoje uma evidência, contrastando com a capacidade organizativa, científica e política  chinesa (no controlo da situação, na capacidade de planeamento, no desenvolvimento científico, na solidariedade internacional). Capacidade chinesa que contrasta com a ineficácia e incapacidade dos EUA.

Um retomar do Estado-nação que contem, contudo, nos seus antecedentes a concorrência desenfreada, a limitação das migrações, a reconstrução dos muros entre nações, o declínio dos valores morais, o niilismo e o fascismo (palavra tabu na Europa,Intitulando-o «extrema direita», «conservadorismo radical, «populismo», «populismo de direita»)[vi]. Numa época de globalização ꟷ etiquetada assim pela maior facilidade de comunicação humana à escala mundial, mas que tem como principais sinais caracterizadores, após os anos 80 do século passado, a financiarização da Economia, com o consequentedeterioramento da importância da criação de valor  ꟷ, o agravamento das desigualdades económicas e sociais em cada país e à escala mundial.

O renascer do Estado-nação na resolução de um problema universal, que eventualmente exigiria umaforça e capacidade de actuaçãomuito diferente de uma ONU, hoje profundamente debilitada (apesar da importantíssima função neste processo da Organização Mundial de Saúde, subordinada a aquela entidade).

  • Revelaram-se grandes capacidades de adaptação, imaginação e criatividade dos sectores mais diversos das populações. Tal é a variedade de manifestações de muitos sectores da população, da adaptação de fábricas a novas produções, à diversidade de formas de produção e recepção de novos conhecimentos, da utilização de múltiplas formas de contacto entre pessoas, às manifestações culturais, das descobertas científicas às novas formas de organização do trabalho, ao reinventar o quotidiano com novas formas em países e regiões de grande diversidade cultural. Quase que podemos dizer que se redescobriu a imaginação, tendencialmente esmagada ao longo da vida normal de cada um de nós.

O Homem ganhou nova projecção. Deixou, provávele temporariamente, de ser mero possuidor de força de trabalho para voltar a ganhar a plenitude do seu reconhecimento na vida colectiva e na preservação do planeta.

Estamos num momento de profundos conflitos, tensões e contradições: entre a possibilidade de uma nova ética cujos fundamentos foram reconstruídos e um agravamento daexistente, actualmente conducente a uma importância primordial (e ignorada) do crime organizado; entre uma dignificação da política como actividade digna e honesta e a perpetuação do neoliberalismo e da financiarização; entre a democracia e o fascismo travestido de alguma forma, entre o Homem como centro de toda a actividade humana e a consideração exclusiva da sua capacidade de trabalho, num mundo crescentemente desigual.

Um antagonismo de longo prazo, com possibilidade de rupturas e compromissos no curto prazo. Em que todos nós somos decisivos.

“Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...”
  … à honestidade, dignificação do Homem e da democracia.


[i]Segundo José Aranda da Silva in Le Monde Diplomatique, “A epidemia da gripeoriginada por vírus influenza é anual e apresenta letalidade elevada em muitos países. Em Portugal, os dados do Programa Nacional de Vigilância da Gripe apontam para cerca de 3300 mortes na época de 2018-19.”

[ii] “A nossa experiência colectiva, enquanto sociedade, remete-nos para há cem anos, com a gripe espanhola, a pneumónica, em 1918” em que também se recorreu ao isolamento e aos encerramentos. Ver Maria Augusta Sousa in Le Monde Diplomatique.

[iii]Segundo o Observador “o Gmail bloqueia diariamente mais de 100 milhões de "mails" de "phishing", 18 milhões dos quais relativos à Covid-19”. Ver também Edgar Pimenta em CiberCovid19.

[iv] Segundo o GAFI “a atual conjuntura potencia o aparecimento de comportamentos oportunísticos de natureza ilícita, como a oferta de esquemas de investimento fraudulentos e captação de financiamento com base em informação falsa, entre outros”.

[v] Ver Pedro Crisóstomo inCrise leva Europa a olhar para dentroealidar com os seus «paraísos fiscais»

[vi] Ver Rob Rieman in O Eterno Retorno do Fascismo