Manuel Castelo Branco , Visão online
Sistemas como o de comércio de licenças de emissão, que agem primeiro sobre a quantidade de emissões (via o limite estabelecido), são bastante mais suscetíveis a fenómenos como o da corrupção, do que os sistemas que agem primeiro sobre o preço, como o imposto sobre o carbono.
Em 2009, o Fundo Monetário Internacional (FMI) passou a publicar, duas vezes por ano, um relatório com o título Fiscal Monitor , com o objetivo principal de dar a conhecer e analisar os mais recentes desenvolvimentos relativos ao tópico das finanças públicas. A título de exemplo, o mais recente destes relatórios, de abril deste ano, debruça-se sobre as implicações da pandemia COVID-19 em termos de finanças públicas. Já os relatórios do ano passado, focaram-se em dois assuntos de extrema importância: o relatório de outubro analisou a questão “como mitigar as alterações climáticas?”; o relatório anterior, de abril de 2019, debruçou-se sobre o tópico do combate à corrupção. No relatório sobre o combate à corrupção, reconhece-se a necessidade de “maior cooperação internacional” para lidar de forma adequada com “assuntos multilaterais”, entre os quais se destacam os da tributação das empresas, das alterações climáticas e da corrupção, referindo-se, de forma mais geral, a indispensabilidade de tal cooperação para atingir os objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS). Não obstante, em nenhum dos dois relatórios em análise se apresenta uma relação direta entre os dois tópicos, políticas de alterações climáticas e corrupção. Por isso, esta crónica debruça-se sobre a corrupção e as respostas, em termos de políticas, às alterações climáticas, tendo por foco os dois relatórios Fiscal Monitor de 2019 acima referidos.
No relatório de abril de 2019, afirma-se, de passagem, que os instrumentos de política de mitigação das alterações climáticas mais eficientes são os que permitem efetuar a fixação do preço do carbono, como o imposto sobre o carbono. No relatório de outubro desse mesmo ano, em que se analisa a questão da mitigação das alterações climáticas, discutem-se de forma aprofundada alguns desses instrumentos, entre os quais o imposto sobre o carbono e os sistemas de comércio de licenças de emissão, os dois instrumentos em que nos vamos focar neste texto. No caso do imposto, pode dizer-se, de forma simplista, que é cobrado sobre o fornecimento de combustíveis fósseis proporcionalmente ao seu teor de carbono. No caso dos sistemas de comércio de licenças de emissão, o seu funcionamento pode ser descrito, de forma breve e ignorando os aspetos mais complexos da questão, da seguinte forma: cada empresa deve possuir uma licença por cada tonelada das suas emissões de gases de efeito estufa e o governo estabelece um limite para o total de licenças (ou seja, para o total de emissões permitidas). É através do comércio em mercado de licenças de emissão que se estabelece o preço de cada licença.
No relatório do FMI sobre a mitigação das alterações climáticas oferece-se uma comparação de alguns possíveis instrumentos de política de mitigação, entre os quais o imposto sobre o carbono e o mercado de licenças de emissão, referidos acima. Estes dois instrumentos são considerados os mais eficazes e eficientes. Entre as vantagens do imposto relativamente ao mercado contam-se maior facilidade de administração, a previsibilidade dos preços e a capacidade de geração de receitas. Face a outros instrumentos, ambos possuem uma desvantagem relacionada com a elevada probabilidade de oposição política. Não obstante, reconhece-se que, no caso do imposto, se as receitas arrecadadas se traduzirem em cortes relativamente a outros impostos ou em investimentos isto pode aumentar a aceitabilidade política. O que não é discutido neste relatório é como se relacionam estes instrumentos de política com a corrupção e fenómenos conexos.
Ora, a propósito da relação entre a corrupção e fenómenos associados e os dois instrumentos de política de mitigação das alterações climáticas em causa, alguns especialistas reconhecem que, face ao imposto sobre o carbono, o mercado de licenças de emissão possui, ao nível da aceitabilidade política, a característica adicional de ser mais popular entre as empresas, em particular, entre aquelas que consideram ser possível exercer pressões, via lóbi, sobre as autoridades políticas no sentido de, por exemplo, obter licenças gratuitas.
Quem também enfatiza este tipo de relação é William Nordhaus, que, pelas suas contribuições para a análise económica das alterações climáticas, recebeu em 2018, em conjunto com Paul Romer, o prémio Sveriges Riksbank de ciências económicas em memória de Alfred Nobel (prémio geralmente reconhecido como “o Nobel da Economia”). Num livro com o título Climate Casino, este economista chama a atenção para o facto de sistemas como o de comércio de licenças de emissão, que agem primeiro sobre a quantidade de emissões (via o limite estabelecido), são bastante mais suscetíveis a fenómenos como o da corrupção do que os sistemas que agem primeiro sobre o preço, como o imposto sobre o carbono. Isto é assim porque o sistema de comércio de licenças de emissão cria ativos valiosos na forma de licenças de emissão transacionáveis e distribui-as a países ou empresas. Como afirma Nordhaus, um sistema deste tipo, que limita as emissões, cria escassez onde ela não existia antes, sendo uma fonte de criação de rendas.
O sistema de comércio de licenças de emissão da União Europeia é o sistema deste tipo que se encontra em vigor há mais tempo. Relativamente a ele, uma leitura que se recomenta é a do Relatório Especial do Tribunal de Contas Europeu publicado em 2015 e com o título “Integridade e execução do Regime de Comércio de Licenças de Emissão da União Europeia”. Neste relatório, são referidos vários incidentes de ciberataques, presumíveis furtos de licenças e fraudes “em carrossel” ao IVA, as quais, de acordo com uma estimativa da Europol relativa ao período entre junho de 2008 e dezembro de 2009, causaram um prejuízo que ascendeu a cerca de cinco mil milhões de euros.