Luísa Fontes Neves , Visão online

Não obstante o benefício destas extraordinárias campanhas, parece ser evidente que os portugueses são mais felizes a autopromover-se dos seus ditos atos altruístas do que em produzir, desenvolver-se, enriquecer, instruir-se e, assim, promover o desenvolvimento do País.

Acabámos de sair do decreto do Estado de Emergência para o decreto do Estado de Calamidade. Vivemos mais de 40 dias em regime de confinamento obrigatório, vítimas de um vírus muitas vezes fatal, totalmente desconhecido. Temos medo de nos tocar, beijar, de visitar familiares e amigos.

Viver em maio de 2020, em qualquer local do mundo é ouvir, respirar, suspirar, trabalhar e escrever sobre Covid-19… Se José Saramago fosse vivo, certamente não escreveria sobre o tema, afirmaria tratar-se apenas um “dejá vu”. Mas para nós, mortais desprovidos de imaginação dantesca, ainda nos custa a acreditar que não estamos perante um qualquer filme de ficção científica.

Neste contexto, parece fazer parte do “ser português” que sempre que há uma crise grave, ou um apelo mais tocante (uma criança, um idoso, um animal, uma população), que se levanta um qualquer super poder Tuga, uma ânsia de ajudar, uma vontade de ser “o melhor da generosidade e voluntariado”, iniciando-se a “batalha do quem é o mais generoso” e do “voluntário do mês”… tal é a vontade de aparecer e afirmar na tv e redes sociais “eu fiz”, “eu dei”, “eu fui voluntário”, eu deixei a minha família para ajudar… (nem que sirva apenas para se livrar das horas de confinamento com a família !!!)

São programas de tv, notícias de telejornal com a generosidade dos portugueses em alta, já que o número de vítimas do Covid em Portugal (felizmente!) não acompanha os números astronómicos vividos por outros países e temos que encher as notícias com o que nos resta…

Não tínhamos dúvidas que, aos primeiros sinais de uma crise pandémica totalmente desconhecida, o Tuga arregaçasse as mangas! Desde costurar milhares de batas, cogulas, tapa botas, máscaras para oferecer aos profissionais de saúde; organizar e cozinhar milhares de refeições para os que ficaram sem meios; ofertas de alojamento para aqueles que sentiram necessidade de se isolar, evitando não infetar as próprias famílias; reencontrar o espírito empreendedor e alterar instalações fabris para desenvolver projetos de construção de ventiladores e viseiras para os hospitais… e conseguir inclusivamente, em poucos dias, angariar fundos suficientes para os comprar; distribuir alimentos em caixas solidárias espalhadas por dezenas de localidades do país; e mais uma boa centena de ideias que se desenvolveram em atos de voluntariado, em Portugal.

Não obstante o benefício destas extraordinárias campanhas, parece ser evidente que os portugueses são mais felizes a autopromover-se dos seus ditos atos altruístas do que em produzir, desenvolver-se, enriquecer, instruir-se e, assim, promover o desenvolvimento do País, que, potencialmente, reduziria a necessidade de tantos atos individuais de voluntariado …

Mas parece também, que somos voluntários não por sermos um povo verdadeiramente altruísta e filantropo, mas por uma imensidão de motivos que em nada se relacionam com o “amor ao próximo”.

Nesta aterradora crise pandémica surgiram novos voluntários de todos os lados… voluntários que nunca tinham tido qualquer “apelo” para nenhuma espécie de causa, voluntários que se auto promovem, voluntários oportunistas, voluntários pós-traumáticos, religiosos, desocupados e, os mais recentemente fundados, voluntários anti-confinamento…

Sempre nos deparámos com aquele que denomino como “voluntário oportunista”. AC (antes Covid) eram aqueles que apenas participavam uma vez por ano em ações de voluntariado social promovidas por empresas onde, curiosamente, centenas de funcionários se voluntariam para, num único dia, não terem que ir trabalhar para o escritório, ou para mostrar à sua chefia a sua veia de caridade… Na verdade, não têm vontade nenhuma de passar o dia a aturar criancinhas, ou de pintar paredes, mas é só uma vez por ano e “fica sempre bem”; como aqueles que se voluntariam por ser vantajoso para o seu curriculum académico; o que apenas pretende uma contrapartida dessa ação de voluntariado, obtendo recomendações dessa instituição para um futuro empregador; etc..

Também usual, e AC, era encontrarmos o “voluntário forçado” sempre muito presente nas campanhas do Banco Alimentar, essencialmente formado por crianças e jovens que, fruto da pressão de Pais, familiares, amigos, namorados(as) são praticamente empurrados para ações de voluntariado pelas quais não sentem qualquer empatia ou interesse (alguns destes irão conseguir atingir o patamar do “voluntário oportunista” quando perceberem as vantagens do seu ato de voluntariedade).

Já o “voluntário pós-traumático”, atribuo àqueles que, fruto de uma experiência pessoal traumática, se tornam voluntários em causas relacionadas com esses mesmos traumas, como pós acidentes de viação, falecimento ou doença de um familiar (como Alzheimer, Lupus, Liga Portuguesa contra o Cancro, etc.). Muito, provavelmente, serão os futuros voluntários no sentido estrito da palavra.

Descobrimos também o “voluntário desocupado”, fortíssimo nas idades mais avançadas, constituído por pessoas reformadas, mas ainda saudáveis física e mentalmente, e que apenas pretendem manter-se ocupadas. Lamentavelmente esta tipologia é bastante fraca em idades mais jovens, como por exemplo, no grupo dos jovens desempregados que, apesar de estarem verdadeiramente desocupados e fisicamente mais capazes, não sentem motivação suficiente para ocupar o seu tempo em ações de voluntariado, exceto, claro, que isso lhes traga determinada vantagem e, portanto, enquadram-se melhor nos “voluntários oportunistas”.

Coloco o “voluntário religioso”, intimamente relacionado com ações ligadas aos vários credos religiosos, na esperança que, após a sua morte, encontrem o tal “lugar no céu”… Neste sector encontramos também alguns “voluntários oportunistas”, mas principalmente “voluntários desocupados”.

No decurso desta pandemia surgiu uma nova tipologia de voluntário, o “voluntário anti-confinamento”, ou “voluntário anti-stress familiar”. Parece ser fortemente preenchido por membros do sexo masculino, comparativamente com os anteriores, e caracteriza-se por uma panóplia de ações de voluntariado em espaços fora de casa! Estes voluntários parecem não estar especialmente preocupados com o ato em si, desde que a dita ação os possa manter fora do ambiente familiar e, portanto, aceitam qualquer ato de voluntariado fora de casa e, se não encontrarem, inventam! Esta nova forma de voluntariado, é consequência direta do confinamento obrigatório instaurado com o decreto do Estado de Emergência… Desde ofertas para fazer compras para todos os vizinhos do bairro e quiçá da cidade inteira, passear os cães, visitar idosos, alimentar os sem abrigo, cantar os Parabéns às criancinhas, limpar áreas florestais, pintar a casa do vizinho … Em resumo, tudo serviu de justificação para sair de casa em Estado de Emergência…

Mas o pior, aquele que parece ser verdadeiramente dispensável, aquele que na verdade pouco ou nada contribui durante toda a sua vida activa de dito “voluntário”, é o “voluntário mediático”. Sempre existiu mas está agora no auge do seu desenvolvimento por se sentir pressionado pelos seus pares sociais (leia-se do facebook e do instagram) e reinventou-se DC (depois Covid). Este tipo de “voluntário” pouco ou nada produz. Aparece exclusivamente em situações de crise mediática, seja qual for a dita crise, faz um grande alarido à sua rede de amigos facebookianos e instagramers para autopromover a sua colossal ação de “voluntariado” que não é mais do que ir visitar um vizinho com mais idade, com o qual nunca tinham falado, fazendo questão de postar 20 fotos desde a porta de sua casa até à porta do vizinho (no apartamento ao fundo do corredor), mostrando não só o caminho para lá chegar, como o preço da farinha e dos ovos que usaram para fazer aquele bolo sem qualquer graça e a tamanha generosidade que os levou a cozinhar para o dito vizinho, que por acaso até é diabético e não pode comer bolos, mas como até àquela data nunca tinham falado com o senhor, não sabiam da sua doença, nem que tinha acabado de lhe falecer a mulher e que os filhos não o iam visitar por causa do Covid-19. Não obstante o comportamento ridículo perante o vizinho, não só estão livres da crítica das redes sociais que desconhecem os pormenores ocultados entre a cozinha e o fundo do corredor, como esperam grandes elogios. E então trazem o bolo de volta o qual devoram até à última migalha e publicam o drama do vizinho de forma minuciosa nas redes sociais, mas sem denunciar a vergonha de nunca o terem conhecido antes, apesar de morar na porta ao lado, e de tantas vezes terem passado por ele sem sequer dizer bom dia, ou boa tarde, durante anos.

Esta é a tipologia mais desorganizada, mais inútil e menos trabalhosa.

De acordo com a 6ª Edição do Diccionário de Língua Portuguesa da Porto Editora (volumoso alfarrábio mas ao qual ainda recorro, pouco convencida das definições disponíveis no Google) define o adjetivo voluntário, adj. que se faz de livre vontade; sem constrangimento; que procede espontaneamente. A meu ver, apenas a conjugação destes 3 atos deveriam compor a definição de voluntário, acrescida de um adicional: filantropo, adj. e n.m.que ou aquele que se esforça por melhorar a situação dos outros; que ou aquele que tem preocupações humanitárias.

Será então, assim tão raro o voluntário recorrente (independentemente da situação de crise), verdadeiramente altruísta e sem qualquer espécie de compensação social, económica ou até pessoal? Parece que sim, apesar de, sem estes não existirem todos os outros, pois estes são os que promovem, motivam, mantêm todos os projectos, e que, inclusivamente contribuem para o PIB nacional pela necessidade de recorrerem à economia paralela.

Ser voluntário requer, efetivamente, muito esforço, empenho pessoal e, essencialmente, muito trabalho. E quando refiro empenho pessoal, não me refiro ao tempo que vamos retirar ao ginásio, ao trabalho, ou aos filhos, mas é um facto que será tempo retirado às inúmeras horas que passamos nas redes sociais, àquele lugar cativo no sofá, ao Netflix, enfim, ao tão maravilhoso mundo do sedentarismo…

Na verdade, o voluntariado definido na 6ª Edição do Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora é raro, duro e extremamente solitário…