Carlos Pimenta, Dinheiro Vivo (JN / DN)

Será o offshore que permite ao governo da Holanda desprezar sobranceiramente o labor e os cidadãos do sul da Europa? Estranha forma de solidariedade!

...

A Europa, esse continente que se estende do Oceano Atlântico aos Montes Urais, pequeno na dimensão (cerca de 7% do território acima do nível do mar e 11% da população mundial), berço e espaço de realização da chamada cultura ocidental, recheada de artistas, filósofos e cientistas, origem do que hoje designamos por ciência. Espaço principal da religião cristã. Também com grandes períodos de obscurantismo e sangrentos conflitos militares intestinos, e a capacidade de impor o seu domínio ao mundo, tornando muitas vezes sua a riqueza dos outros.

No dia 9 de Maio comemorou-se o Dia da União Europeia (“Esta data assinala o aniversário da histórica «Declaração Schuman»”), com o epiteto de Dia da Europa, mostrando inequivocamente a soberba e o desprezo pelos outros. É essa falsa identidade que permite afirmar que nesse dia se “festeja a paz”, esquecendo a sangrenta, xenófila e «recente» guerra dos Balcãs (entre outras) e o inequívoco facto das desigualdades sociais internas e impostas mundialmente (promovendo o subdesenvolvimento em nome da sua negação1, colocando muitos abaixo do limiar da pobreza) também serem uma «guerra», embora económica, no cumprimento da sacrossanta fé nos mercados.

Sendo a queda do muro de Berlim um momento histórico de enfraquecimento do socialismo e da defesa por alguns do capitalismo como «fim da história», foi igualmente o início de muitos mais muros impedindo a paz e a vida digna a muitos cidadãos, essencialmente africanos e asiáticos.

Contudo a nossa preocupação neste texto são as infracções económico-financeiras, em especial as que se configuram como fraudes.

Quanto a este aspecto podemos dizer que a situação da Europa, nomeadamente da União Europeia, é confrangedora:

  • Imperam as organizações criminosas. As antigas máfias italianas vêem nascer outras, na Itália mas também na Albânia, na Roménia e Bulgária. A poderosa Turquia acompanha este processo. Todas estas combinam bem com plutocracias (como a Rússia) ou Estados da zona dos Balcãs que funcionam como «centros comerciais» de tráficos ilegais diversos. Promovendo a lavagem de riqueza e aproveitando a falta de liquidez, sobretudo em períodos de «crise», as organizações criminosas, transnacionais na sua actuação, apropriam-se de sucessivas actividades legais.
  • A Europa apresenta uma grande quantidade de territórios que são paraísos fiscais e judiciários e controla muitos outros. Segundo o Fundo Monetário lnternacional (que apresenta uma lista incompleta) temos, na Europa: Andorra, Campione (Itália), Chipre, Dublin (Irlanda), Gibraltar (RU), Guernsey (RU), Man (RU), Jersey (RU), Liechtenstein, Londres (RU), Luxemburgo, Madeira (Portugal), Malta, Mónaco, Holanda e Suíça. Geograficamente fora, mas por ela controlada: Tahiti (França), Anguilla (RU), Aruba (Holanda), Bermuda (RU), Ilhas Virgens (RU), Ilhas Caimão (RU), Montserrat (RU), Antilhas Holandesas (Holanda), Turks e Caicos (RU), Estados Associados das Índias Ocidentais (RU). Ainda há outros, que embora não sendo do Reino Unido pertencem à Commonwealth. Recorde-se que o sigilo associado aos offshores tanto tem a ver com o comportamento de cada um como com a articulação com a rede internacional.
  • Com os dois parâmetros anteriores e o espaço euro da UE, não é de estranhar que após o 11 de Setembro de 2001, com o crescente controlo dos EUA sobre o branqueamento de capitais, a Europa se tenha tornado o principal centro de negócios criminosos.2

Quanto aos offshores  convém recordar que a Comunidade Económica Europeia, hoje União Europeia, desde o início conteve no seu seio dois grandes offshores: Luxemburgo e Holanda. O primeiro já teve, na figura de Jean-Claude Juncker a presidência da Comissão Europeia durante cinco anos; o segundo aumenta de dia para dia de importância.

A Holanda tem, segundo a Tax Justice Network , atendendo ao sigilo financeiro e à sua importância relativa na rede de paraísos fiscais, o sétimo lugar no conjunto do paraísos fiscais mundiais. Ao longo dos últimos anos tem aumentado bastante a sua importância relativa: passando de 41º em 2015 a 14º em 2018 e a 7º actualmente. Acolhe cerca de 15.000 «instituições financeiras especiais», conhecidas como «empresas de fachada» ou «empresas de caixa de correio» ꟷ que usufruem de regalias e isenções fiscais, não pagam o devido no país de origem e encobrem a verdadeira identidade dos seus proprietários ꟷ, por onde circulam cerca de quatro biliões de euros por ano, o que corresponde a muitas vezes o produto nacional bruto daquele país.

Uma significativa parte das empresas cotadas em Portugal pertencentes ao PSI 20 usufruem desta vantagem, desvantagem para todos as outras pessoas, individuais ou colectivas, do nosso país.

Será esta situação que permite ao governo da Holanda desprezar sobranceiramente o labor e os cidadãos do sul da Europa?

Estranha forma de solidariedade e interajuda!

Essas posições são uma permanente manifestação de falta de solidarização, de defesa do neoliberalismo e do aumento das desigualdades sociais, que podem levar ao desmembramento da actual União Europeia e à reconstrução de uma sociedade que coloque a dignificação do Homem como objectivo central.

Como afirma o Presidente do Movimento Europeu em Portugal

“São esses valores [paz e prosperidade], a que tantos países e povos acabaram por aderir, que voltam a estar em causa perante a atual crise sanitária, económica e social que todos enfrentamos.

O reforço da liberdade em segurança, a tolerância com responsabilidade social, a igualdade de oportunidades com solidariedade, entre novas e velhas identidades, uma economia ética e ambientalmente sustentável, são os desafios a esses valores, que o mundo, mas muito especialmente a nossa Europa, têm neste momento pela frente.”3

NOTAS

[1] Ver “Embuste do Desenvolvimento”. Africana Studia #10, 2007

2 Para uma mais completa abordagem ver Costa (Org.), J. d. F., Godinho (Org.), I. F., & Sousa (Org), S. A. (2014). Os crimes de Fraude e a Corrupção no Espaço Europeu. Coimbra: Coimbra Editora.

3 In Expresso.