Carlos Pimenta, Expresso online (064 25/03/2020)

Neofideísmo no «mercado»

Quando observamos a realidade contemporânea assistimos a uma hegemonia social das actividades económicas (interrompida no período mais recente pela importância decisiva da sobrevivência ambiental no nosso planeta, se queremos que a espécie humana continue futuramente a existir, e pelo flagelo da pandemia).Com uma lógica do primado do indivíduo ꟷ não enquanto homem inserido no todo social com uma determinada ética,  mas como interveniente no mercado económico ꟷ, agente racional inevitavelmente condicionado pela correlação de forças determinada pelo poder económico, social e políticos existentes. A concorrência surge como a palavra chave para a melhoria da humanidade, transmitida e aprendida desde os bancos da escola, continuada no aumento do poder dos que já o têm, praticada por quem pode, contra os restantes.

É esta leitura, característica da organização e prática social, que frequentemente é reconhecida como neoliberalismo.

Esta centragem no comportamento individual, em que cada moeda possuída é mais um voto no poder de mercado, faz com que se encare com grande cepticismo o Estado, embora tendo que o reconhecer como inevitabilidade histórica e espaço de promoção pessoal, procurando-se moldá-lo aosinteresses dos mercados. Para tal basta controlá-lo (pela correlação de forças política, pela corrupção ou qualquer outro processo), fazê-lo depender dospoderosos (financiando-se nos mercados e reduzindo o seu poder na actividade económica), restringindo-o ao mínimo indispensável (abandonando o planeamento e fingindo que regula, sem fiscalizar), transformá-lo em arauto da iniciativa privada (privatizando e suportando os custos sociais das fraudes dos bancos e outras entidades).

O neoliberalismo teve um longo período de incubação, mas é com a globalização e financiarização (centrada nos EUA, primeiro, e na União Europeia)que se consagra (ver Globalização, produção, capital fictício e redistribuição). Com o derrube simbólico do muro de Berlim consagra-se o sonho do fim da história.

É a este neoliberalismo que nós preferimos designar, para não haver espontaneamente subentendidos ou confusões por neofideísmo nos «mercados».

  1. O liberalismo do séc. XVIII representou um grande progresso epistemológico (a adopção de instrumentos de observação e metodologias que constituem uma ruptura com as concepções assumidas pelo conhecimento espontâneo; a concepção de que a sociedade tem uma autonomia relativa que permite estudar as suas leis; sendo a Revolução Industrial um progresso da humanidade), o mesmo não se poderá dizer do neoliberalismo (partem dos modelos teóricos da gestão óptima dos recursos escassos para a adequação à realidade). Por outras palavras, perante um desajustamento entre a realidade social e os modelos «científicos», concluem provavelmente que a realidade é que está errada, os agentes económicos é que se comportam de forma inadequada).
  2. No que se refere ao conceito de «mercado» ꟷ palavra-chave neste processo ꟷ enquanto os primeiros a utilizam como relação (potencial ou efectiva) entre compradores e vendedores, parte da sociedade com uma determinada cultura, os segundos também a utilizam enquanto modelo do que deve acontecer, enquanto símbolo do modo de produção ou como mero argumento de oposição à ditadura.

Resumindo, enquanto neoliberalismo pode levar a admitir que se trata de uma nova leitura da realidade observada pelos liberais (com Adam Smith como grande pilar), a designação de neofideísmo explicita desde logo que estamos fora da construção científica (ver Racionalidade, Ética e Economia).

Neofideísmo e fraude

Designando por fraude toda a violação da ética vigente, enquanto acto intencional envolvendo o logro do defraudado ꟷ ora resultado dos comportamentos de pessoas, individuais ou colectivas, ora na sequência de dinâmicas sociais propensas ao seu surgimento ꟷ, podemos dizer que a fraude sempre existiu. Recorrendo aos primórdios da escrita, é sempre possível encontrar um qualquer texto que o demonstra.

Contudo esta é uma leitura limitada. As fraudes de todo o tipo (fiscal, corrupção em todos os contextos, informática, desportiva, burla, etc. contra os consumidores, os cidadãos, as empresas, o Estado, etc., cometidas pelos indivíduos, pelas pessoas colectivas, pelos Estados, pelas organizações criminosas, por ricos e menos ricos) processam-se socialmente com uma certa frequência e têm um certo valor e à medida que um ou outro evolui alteram-se as intensidades de impacto das fraudes, nas dinâmicas sociais efectivas e na percepção que os cidadãos têm dessa realidade.

Se a fraude sempre existiu só recentemente existe a clara consciência social da necessidade de a combater sistematicamente, de uma política antifraude.

Se desde os fins do século XIX que se pode falar duma internacionalização das transacções económicas com multinacionais liderando o processo, se é com o consumismo que se consolida o primazia do comportamento individual sobre o social, se é com os regimes fiscais especiais existentes em alguns paísespara não residentes que se vai alargando a lavagem de dinheiro, é na década de 80 do século passado que a fraude se tornou endémica. Usufruiu dos avanços tecnológicos de então (expansão dos microprocessadores e da microinformática), da globalização com a associada financiarização (o primado do «desenvolvimento» assente no aumento da apropriação individual de riqueza, em detrimento da criação de rendimento social, a actividade bolsista crescente desligada da produção, a transferência de poder económico social para fundos diversos sem actividade produtiva) e o fim do socialismo na Europa.

A criminalidade de colarinho branco, antecipada por Sutherland, algumas elites económicas e políticas dominantesassumem-se como os grandes defraudadores. O neoliberalismo potencia exponencialmente esta mudança radical.

Entretanto a criminalidade económica organizada aproveita toda esta realidade para reforçar o seu domínio económico, assumindo-se como entidades organizadas e altamente lucrativas, resilientes, diversificadas e interligadas. A financiarização abre muitas novas possibilidades de branqueamento de capitais (articulada com o aparecimento das criptomoedas a partir de 2009) e a falta generalizada de liquidez na crise económica de 2008 faz com que o branqueamento de capitais (tendo como nó górdio o tráfico de droga) assuma novas dimensões com menor possibilidade de ser capturado, reforçando desde então o papel das organizações criminosas internacionais nas actividades económicas legais.

Há uma aliança e fusão da criminalidade de colarinho branco e a organizações criminosas multinacionais.

O neoliberalismo vai potenciando e viabilizando esta dinâmica.

Impacto da pandemia

Dito isto a pergunta que oportunamente se faz hoje é: qual será o impacto da crise económica resultante da presente pandemia sobre este quadro?

É uma resposta muito difícil, cheia de hipóteses, que também testarão a força social do fideísmo nos «mercados».

Porque não é possível esta incursão sem o quadro anterior explicitado, apresentámo-lo.

Porque ainda temos que aprender muito e ter espaço para a sua apresentação reservamo-lo para a próxima crónica.