José António Moreira, Expresso online (060 26/02/2020)
A mitologia grega apresenta Midas como o rei que com um toque tudo transformava em ouro. É a origem da popular expressão “toque de Midas”,usada para caraterizar as qualidades de alguém que, sem grande esforço, faz prosperar o negócio, multiplicando os lucros deste.
Os banqueiros portugueses são os sucessores do rei Midas. Tocam no preçário das instituições que dirigem e logo reluz ouro (sob a forma de comissões), permitindo-lhes, facilmente, aumentar a remuneração dos acionistas ou, nalguns casos, cobrir prejuízos de crédito (mal) concedido. A alquimia é atrozmente simples: debitam-se as contas dos clientes a gosto e os proventos do “toque” caem diretamente na conta de resultados da instituição. Simples, sem ondas, muitas vezes sem que o cliente se aperceba do sucedido. Ouro sem dor.
Um exemplo, vivido em primeira mão. Em janeiro do corrente ano, sem qualquer aviso específico prévio, a comissão de gestão de conta que a Caixa Geral de Depósitos(CGD) me cobrava aumentou 28%relativamente ao mês homólogo do ano anterior. 28%!Relembre-se que nesse mesmo período, a taxa de inflação na economia terá rondado0,3% e a evolução dos salários foi nula, ou perto disso.
Em tal contexto, podemos olhar para este monstruoso aumento como um exemplo concreto do “toque de Midas”, ou então como um caso com contornos de “apropriação indevida de fundos”. Mitologia à parte, deveria ser esta a classificação do sucedido, não fora o facto de os meandros da Lei pressuporem que a simples alteração do preçário de um banco, um documento de dezenas de páginas disponível ao público, é prova suficiente em como o cliente bancário era conhecedor de tal atuação e, por isso, poderia tomar as medidas julgadas por convenientes para se proteger dessa apropriação.
Não comungo de tal entendimento, longe disso. Mais, na atualidade, em que essas mesmas instituições bancárias têm facilidade de enviar mensagens sem custo, não haver um contacto específico explicando ao cliente quando, como e porquê lhe vão cobrar mais comissões pelo mesmo serviço é, no mínimo, um comportamento opaco, destinado a passar despercebido.
“Isto é o capitalismo selvagem no seu melhor!”, retorquiu-me a L. quando lhe contei a situação. Não concordei. O capitalismo só se torna selvagem se nós, os consumidores, permitirmos que tal aconteça, se não fizermos nada quando nos “aliviam” dos meios que com o esforço do nosso trabalho obtivemos. A G., por seu lado, disse-me “não quero saber … afinal estamos a falar de mais 70 cêntimos por mês”. Como economista, ela tem razão quanto ao facto de se tratar de um montante monetário irrisório, que não justifica, no imediato, numa análise custo-benefício, o tempo perdido numa reclamação (que fiz), muito menos o trabalho de transferência da conta para outra instituição, ou a sua transformação em conta de serviços mínimos bancários (SMB). No entanto, qualquer um destas atuações encontra justificação, pelo menos, no domínio dos princípios, no contributo que cada cidadão-cliente tem de dar para o harmonioso funcionamento do sistema económico em que vive.
A não existir tal contributo, mais tarde ou mais cedo cada um será esmagado pelo aperto dos que possuem o “toque de Midas”.Mais, se ao nível individual tal montante é irrisório (por agora), não o é em termos coletivos. Só na CGD, considerando que cerca de dois milhões de contas tenham sido atingidas, o aumento referido representa anualmente uma transferência, sem contrapartida, de cerca de 16,8 milhões de euros da conta dos clientes para a conta de resultados da instituição (mais 700 mil para o Estado, de imposto de selo).
A conta de SMB imposta pela Assembleia da República, que pretendia salvaguardar os clientes financeiramente mais frágeis do ”toque de Midas” dos bancos, foi um fracasso. Três fatores parecem ter concorrido decisivamente para isso: parte substancial delesé contraparte emcontratos de empréstimos ou outros, que lhes trariam acrescidos custos em caso de alteração do regime da respetiva conta de depósitos (vítimas que dificilmente podem fugir ao “aperto”); os constrangimentos que os bancos colocam à transformação de contas existentes em contas de SMB (há relatos de clientes a quem foi sugerido que fossem abrir este tipo de contas num banco concorrente); o desconhecimento da sua existência, ou o desleixo em a solicitar, por parte de outros clientes (os alheados).
Na mitologia, o rei Midas terminou mal, morrendo de inanição. Vejamos o que acontecerá aos banqueiros. A Assembleia da República prepara-se para voltar a discutir o assunto “comissões bancárias”. Sou contra a fixação de preços/comissões. No entanto, acho que algo tem de ser feito, muito particularmente para proteger do “toque de Midas” os clientes mais frágeis. Tudo o que possa contribuir para reduzir a opacidade inerente aos aumentos das comissões será bem vindo. Por exemplo, obrigar os bancos que pretendam alterar o respetivo preçário a, previamente, submeterem ao regulador proposta nesse sentido, devidamente fundamentada, para aprovação (dá um bocado de trabalho, isso dá …).
Por mim, vou colocar-me em campo para obter a transformação da conta de depósitos numa de SMB, ou transferi-la para instituição que ainda não cobre comissões. Entretanto, presto o meu preito aos gestores de conta, que vivem a sua vida profissional entalados entre o “toque de Midas” dos seus superiores e a ira dos clientes.