António João Maia, Expresso online (039 02/10/2019)
Winston Churchill tinha razão! A democracia é o pior sistema político que se conhece, depois de exceptuarmos todos os outros.
A democracia, como sabemos, é o modelo de organização política que assenta no povo. Na liberdade e universalidade da vontade popular. São as pessoas, os cidadãos livres, que, em consciência, escolhem os seus representantes para os órgãos de representação e decisão política. Para as estruturas de governação do Estado e dos interesses coletivos que ele representa, e de que é uma espécie de fiel depositário, como procurámos explorar aqui recentemente em Corrupção e confiança democrática.
E é esta ideia, de um modelo de organização política fundada na opção livre, esclarecida e refletida de cada cidadão, que o torna o menos imperfeito de todos os modelos já testados. De facto, o que o brilhante estadista britânico nos disse foi isso mesmo, que, ao invés de ser o melhor modelo de organização política, a democracia é a solução menos deficiente de entre as diversas opções conhecidas. E uma deficiência que se lhe deve reconhecer logo de partida, porventura a mais profunda, e que é incontornável, reside na imperfeição da natureza humana. Reside no facto de a democracia ser servida por homens e de se destinar a servir homens.
Mas revisitemos brevemente o modo como o nosso modelo de democracia está estruturado. Ciclicamente, com intervalos encadeados de 4 ou 5 anos, nós, cidadãos, somos chamados a manifestar-nos através do voto sobre quem queremos para nos representar nas estruturas políticas e, por essa via, para liderar os próprios processos de decisão política de gestão e usufruto dos nossos interesses comuns. Do interesse geral, como é vulgarmente referenciado. E é para isso que já no próximo domingo vamos ser chamados a escolher aqueles que queremos para nos representar na Assembleia da República, o órgão legislativo por excelência, e de cuja composição de forças representativas há-de sair a liderança do Governo da República para o mesmo período temporal de 4 anos.
Somos igualmente chamados a manifestar a nossa vontade através do voto direto e universal para a escolha do Presidente da República (único ato eleitoral que se faz em ciclos de 5 anos) e para a composição das estruturas governativas locais (Municípios e Freguesias). O processo relativo à eleição dos representantes para as estruturas governativas das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira (Parlamentos e Governos Regionais) faz-se igualmente por votação universal, embora neste caso apenas com a participação dos cidadãos que residem naqueles territórios.
Este foi o modelo instituído pela Constituição de 1976, que se seguiu à revolução de abril de 74, e que os especialistas de análise das questões políticas consideram ter adquirido já um estado de maturidade muito consolidado.
Claro que o modelo – como qualquer outro – pode sempre questionar-se e por essa via vir a ser melhorado e aprofundado. E considero que seja até muito normal e salutar que assim seja, que se procurem soluções que permitam mais e melhor representação da expressão popular em todas as estruturas de gestão do Estado, ou seja de uma gestão que procure soluções cada vez mais eficazes e eficientes na satisfação plena dos nossos interesses comuns.
E a procura de soluções de melhoria decorre desde logo da operacionalização do próprio modelo, ou seja das experiências e dos diversos equilíbrios de forças políticas que se vão sucedendo, num processo que, também por dever de cidadania, deve ser participado pelos cidadãos. Os cidadãos, organizados através da denominada sociedade civil, têm o dever cívico de contribuir para a procura das melhores soluções. Do ponto de vista do cidadão, o processo democrático não pode reduzir-se apenas ao momento da votação. Deve ser um processo que é participado por todos, eleitos e eleitores, em permanência. Os primeiros a cumprirem os seus mandatos e a mostrarem o que têm alcançado nesse âmbito em prol da satisfação do interesse geral, e os segundos a serem mais exigentes relativamente ao controlo da ação política, reconhecendo os bons resultados, quando assim seja, mas exigindo também mais responsabilidade e qualidade relativamente a essa mesma ação política sempre que tal se justifique. A participação ativa da Sociedade Civil é um fator que, em si mesmo, confere um sentido mais amplo e efetivo à noção de interesse geral, como é reforçado pela Recomendação da OCDE de 2017 sobre Integridade Pública.
Porém, neste plano a realidade portuguesa tem-se mostrado bem distinta.
Por um lado e em paralelo (ou em obliquo, utilizando uma noção de geometria política que parece mais apropriada) ao modo como se tem concretizado e consolidado o modelo democrático, nomeadamente ao nível da ação política dos eleitos, temos assistido a muitas – demasiadas! – suspeições de corrupção, envolvendo com particular incidência nomes daqueles que foram escolhidos por nós, cidadãos, para o exercício de tais poderes políticos em nossa representação. Daqueles a quem, também por via do voto, delegámos de forma confiada o exercício dos poderes que estão associados a tais funções.
E a sucessão de todas estas situações noticiadas tem gerado efeitos críticos de diversa ordem sobre o equilíbrio do próprio modelo, sobre a crença na sua validade e sobretudo sobre o fator confiança, uma vez que este é um dos seus alicerces fundamentais.
Claro que todos os grandes casos mediatizados de corrupção acabam por ser explorados pelas diversas forças interessadas nos processos de liderança política, tornando-se armas de arremesso que são utilizadas para diminuir e desacreditar os adversários, como temos vindo a assistir ao longo de toda a campanha eleitoral em curso.
Creio que este é o pior cenário de todos. Neste contexto de se procurar desacreditar tanto quanto seja possível os adversários, em que não se olha a meios para alcançar fins, o que se vai verdadeiramente desacreditando, porventura de forma irreversível, é a credibilidade e a validade do próprio sistema em si mesmo. Os cidadãos, os que escolhem, perdem a confiança nos que se apresentam como candidatos e, por essa via, tendem a perder também a confiança no sistema, no modelo democrático. Por isso acaba por ser de certa forma natural que se afastem ou pelo menos que se desinteressem das questões políticas. A tendência de crescimento que se tem verificado relativamente à taxa de abstenção (com um valor próximo dos 45% no ato eleitoral de 2015) também se explica através deste fenómeno. Todavia, não será certamente por virarmos costas às urnas que contribuiremos para alterar o problema.
E a tornar mais carregado todo este cenário, temos tido uma sociedade civil apática e acomodada, com sinais de pouco envolvimento ou mesmo de indisponibilidade para as questões de interesse coletivo, como tem sido mostrado nos diversos Relatórios dos índices de Democracia do Instituto V-DEM.
E é este estado de adormecimento ou de anestesia em que estamos mergulhados que nos deve verdadeiramente preocupar. Enquanto assim nos mantivermos – e escrevo nós, porque esta é verdadeiramente uma questão de todos – não seremos capazes de exigir mais responsabilidades quanto ao cumprimento da Ética e da Integridade na gestão e na vida pública e por isso não seremos fator de mudança de um certo estado de coisas, de uma certa realidade.