Carlos Pimenta , Visão online

É pela defesa da ética que alicerça a vivência em sociedade e que luto contra a fraude, mas também por egoísmo, tenho que o reconhecer.

Não sou contribuinte. Sou muito mais do que isso: sou cidadão deste país, de uma longa história a auto-estruturar-se nos muitos séculos de existência. Conquistei esse direito ao nascer aqui numa família portuguesa, ao ter um conjunto de direitos e deveres de que sou cioso e procuro usufruir e cumprir. Partilho as regras de convivência em sociedade com todos com que me relaciono, partilho um conjunto de leis, lutando pelas que defendo e cumprindo e trabalhando pela sua revogação nas que discordo. Partilho, e quotidianamente construo, a ética vigente que viabiliza a confiança na minha vivência.

Sei que a afirmação de que o trabalho dignifica o homem é uma realidade e como economista sei bem que garantir um futuro melhor passa pelo aumento crescente do valor acrescentado, que exige indubitavelmente o trabalho produtivo colectivo de milhões de concidadãos, que deviam viver sem nunca saberem e vivenciarem o que é o limiar da miséria, numa sociedade decente que reconheça o valor de quem o pratica.

Sei que há quem me veja exclusivamente como contribuinte porque pago impostos e sou consumidor de bens diversos, mas sou mais do que isso porque também usufruo dos serviços e bens postos à disposição dos cidadãos, de que sou um. Usufruo de uma cultura e de uma convivência que são preciosas. Vivo a democracia e procuro aprofundá-la.

É pela defesa da ética que alicerça a vivência em sociedade e que luto contra a fraude, mas também por egoísmo, tenho que o reconhecer. Porque, como diz Sophia de Mello Breyner Andresen

Uma terrível atroz imensa
Desonestidade
Cobre a cidade
Há um murmúrio de combinações
Uma telegrafia
Sem gestos sem sinais sem fios
O mal procura o mal e ambos se entendem
Compram e vendem
E com um sabor a coisa morta
A cidade dos outros
Bate à nossa porta

Bate à nossa porta pelo lado do Estado e pelas empresas, no que pagamos e, também, no que não recebemos.

Porque sou cidadão causa-me náuseas muitas, mesmo muitas, afirmações públicas. Apenas alguns exemplos: «Não é de esperar que haja impactos significativos a nível orçamental devido à nacionalização do BPN» (Teixeira dos Santos, 05/11/2008); «A situação de solvabilidade do BES é sólida, tendo sido significativamente reforçada com o recente aumento de capital» (Banco de Portugal 10/07/2014); «O Banco de Portugal como autoridade de supervisão, tem vindo a actuar muito bem e a preservar a estabilidade e a solidez do sistema bancário português» (Cavaco Silva, 21/07/2014, que já se tinha revelado «distraído» com a actuação de ex-membros do núcleo duro do seu X Governo Constitucional, como Dias Loureiro, José Oliveira e Costa e Duarte Lima); «A solução anunciada pelo Banco de Portugal para o Banco Espírito Santo é aquela que oferece (…) maiores garantias de que os contribuintes portugueses não serão chamados a suportar as perdas que, neste caso, respeitam pelo menos a má gestão que foi exercida pelo BES» (Pedro Passos Coelho, 04/08/2014); «as autoridades portuguesas agiram rapidamente e de forma eficaz no caso do BES. Evitaram uma possível crise sistémica, estancaram os efeitos de contágio no sector financeiro dentro e fora de Portugal» (Mário Draghi, 07/08/2014).

Muitas outras situações me causam o mesmo mau estar: do passeio tranquilo de eventuais defraudadores, com grandes fortunas em paraísos fiscais, aguardando o julgamento ou a decisão final que nunca chega, às suas entrevistas compradas; do perdão das dívidas fiscais às estimativas assustadoras da corrupção em Portugal, da amnésia de muitos nas comissões de inquérito da Assembleia da República às … mil e uma situações do quotidiano.

Vem tudo isto a propósito da notícia de que se vai pedir mais 1037 milhões de euros ao Fundo de Resolução para se capitalizar o Novo Banco, que aquele não os tem e vai pedir ao Governo ꟷ verdadeiro polichinelo para poder baixar o IVA na electricidade, bem de primeira necessidade ꟷ que já contava com mais 600 milhões orçamentados este ano mas que quase certamente os vai superar em muito. «O Novo Banco pode pedir até 3,89 mil milhões de euros, segundo o acordo que foi feito com o Estado na altura da venda do banco à Lone Star em Outubro de 2017». Lone Star que não é uma empresa, mas um fundo financeiro, sem experiência, constituído em 1995 (ano de comportamentos destes fundos que levaram à crise global do capitalismo), com uma lógica de curtíssimo prazo, «que investem globalmente em imóveis, património, crédito e outros activos financeiros». Confirma-o o facto da Lone Star já ter comprado o Novo Banco a outro fundo similar, a Arrow, actuando no mercado de capitais e especializada em crédito malparado.

Para quando o primado ao trabalho honesto, criador de valor novo, sem fraudes?