Rute Serra, Expresso online (022 05/06/2019)

Desde os anos 50 do século passado que um acervo legislativo considerável com origem em especial nos países anglo-saxónicos, deu o mote na regulação da atuação ética de agentes públicos e também dos políticos em geral.

Os vários atos legislativos publicados surgiram, por norma, em consequência de escândalos políticos, como o que representou nos EUA o Watergate nos anos 70 e que culminou com o Ethics in Government Act de 1978, ou o estabelecimento do Office of the Parliamentary Commissioner for Standards em 1995, no Reino Unido, na sequela de um caso de corrupção que envolveu dois parlamentares e um lobista.

Calvin Mackenzie, autor do livro Scandal Proof - Do Ethics Laws Make Government Ethical? concluiu que a tentativa exaustiva de legislar a ética nos Estados Unidos teve como consequência o enfraquecimento da accountability política: “na criação de um governo ético, a parte difícil é conseguir aquilo que a lei não pode garantir”, afirma. E vai mais longe: “não obstante o objetivo da criação de legislação sobre ética seja evitar os escândalos, nenhuma instituição pode ser à prova daqueles, somente através da regulação.”

Em qualquer parte do mundo onde vigore um sistema de representação democrático, o impulso legislativo deste tipo de assuntos reside no constatar das consequências que estes escândalos provocam, na degradação da confiança dos cidadãos nas suas instituições, sejam públicas ou privadas. E a confiança degrada-se porque o exercício da cidadania é cada vez mais ativo.

Não será, contudo, a existência de mais legislação sobre a ética que fará inverter este ciclo de descrédito. E tanto assim é porquanto são as pessoas, individualmente consideradas, que dão vida às instituições, que são o seu capital social. Logo, é da adequação do seu comportamento aos padrões exigidos pela comunidade, que se reverterá esta perigosa tendência e se evitará o sentimento de “salve-se quem puder”. Competirá também àqueles que constituem estas classes – de funcionários públicos, de gestores públicos, de políticos em geral – que sintam pudor, não permitindo contaminações que afetem irremediavelmente a dignidade de quem trabalha por bem. A influência direta dos meios de comunicação social para o decréscimo dos níveis de confiança dos cidadãos nas suas instituições é um facto. Que não se mate, apesar disso, o mensageiro.

As instituições, essas, ainda assim, são maiores que o nosso momento no tempo, pelo que convirá que quem as ocupa, tal não esqueça.

Mas será que todas as ações que fizeram perigar a linearidade da taxa de confiança dos portugueses nas suas instituições – a decrescer desde 2017 - podiam ter sido, através da lei, evitadas?

Há uma diferença entre um indivíduo ético e um indivíduo que obedece às disposições legais sobre ética. Citando a professora de ciência política e autora do livro The Ethics Challenge in Public Service: A Problem-Solving Guide, Carol W. Lewis: “a ética está enraizada no caráter moral do indivíduo e ancorada nos seus valores e princípios.”. Não será o poder restritivo da lei que compelirá comportamentos éticos. Mas será esse poder que punirá quem não os mantenha.

Afinal, resumir-se-á tudo ao seguinte: a ética é o que permanece quando todos abandonam a sala. As leis, por seu turno, estabelecem padrões de comportamento que podem, ou não, correlacionarem-se com o caráter individual de cada um. A sua capacidade coerciva nos indivíduos é externa, mas o compasso moral e ético de cada um, esse, compele internamente.

Mesmo anuindo sobre a impossibilidade absoluta das leis cobrirem todas as condutas, não deixam de providenciar os pilares basilares nos quais as decisões de eleitos e nomeados devem fundear, sempre que destinadas a proteger o interesse público. E aqui contemplamos os denominados códigos de ética, esses instrumentos de controlo interno, disponíveis em quase todas as organizações. Que de nada servirão, se não existir uma infraestrutura ética funcional e memória institucional. Podem até ser enviesantes, se a sua existência servir uma atitude complacente daqueles a quem se destinam e se não forem sendo adaptados conforme o surgimento de diferentes dinâmicas.

Situações existirão, porém, em que poderão ser os próprios ditames legais a induzir dilemas éticos aos protagonistas da ação pública. Entre a prescrição de determinada conduta, definida em instrumento legislativo e aquilo que eticamente nos parece correto, como optar?

Nas sociedades democráticas (e que não desejem esbulhar esse alcançado estado civilizacional), apesar de não existir nenhum modelo legislativo “de tamanho único”, parece consensual exigir regras (e respetivas sanções para os casos da sua violação, evidentemente) sobre determinadas matérias, como sejam a formação contínua em questões éticas, a proteção legal de denunciantes, o registo de interesses, a regulação do lóbi, as portas-giratórias, o nepotismo, os honorários, as contribuições para campanhas eleitorais ou as restrições ao recebimento de ofertas.

Esta legislação é útil no estabelecimento de princípios e na definição de limites, porém, se o objetivo último for um país o mais possível livre de corrupção, não se conhece ainda melhor substituto ao caráter e à integridade pessoal. Aquilo que, por melhor que seja a técnica legística, transcenderá sempre os simples comandos legais.