José António Moreira, Expresso online (024 19/06/2019)
1. Durante o almoço dominical, um dos convivas referiu-se a uma nota de cobrança de IMI que, por lapso, se esquecera de pagar. Um montante irrisório. “Tem cuidado, com as Finanças ninguém brinca.”, chamaram a atenção do outro lado da mesa. O medo floresce.
2.Ainda estão bem presentes na memória as imagens difundidas pelas cadeias de televisão relativas ao denominado “arrastão tributário”, ocorrido há poucas semanas no concelho de Valongo, onde agentes da Administração Tributária e Aduaneira (AT), apoiados por militares da GNR, procederam ao arresto de bens (viaturas) a sujeitos que, parados numa operação stop, tinham algum tipo de dívida para com aquela autoridade. Dignas de um filme de Emir Kusturica, as imagens de cavalos descarregados de um camião arrestado, com o respetivo condutor a afastar-se do mesmo, ar cansado, com os animais pela arreata. Não era a primeira operação do género, mas as imagens difundidas tornaram-na única, revoltante, assustadora.
Na semana seguinte, a notícia de que casais nubentes seriam obrigados, sob pena de multa pecuniária, a entregar declaração com indicação do local onde decorreria a boda do casamento, o número de convidados, a empresa fornecedora do serviço de “catering”. Intromissão tributária na vida de cidadãos não devedores. Assustadora.
Menos visíveis, porque casuísticos e mais difíceis de darem corpo a uma peça televisiva, pelo grau de tecnicidade envolvido, mas igualmente assustadores, os muitos casos em que contribuintes são arbitrariamente tributados por agentes da AT, tendo como única escapatória, para se defenderem, o recurso aos tribunais, em processos morosos e dispendiosos, onde a sentença chega, muitas vezes, tarde de mais para obstar à insolvência da entidade, motivada por tais processos; ou as penhoras tributárias lançadas à revelia de qualquer proporcionalidade entre o montante da dívida em mora e o valor do bem penhorado.
3.O medo instala-se nos contribuintes, face à atuação da máquina tributária. Aparentemente, não há responsável político pelas atuações referidas, que, se não são inequivocamente ilegais, estarão na zona cinzenta entre a legalidade e a ilegalidade. No caso do referido “arrastão”, os responsáveis – o Secretário de Estado das Finanças e o Ministro das Finanças – colocaram-se de fora, “nada sabiam” do assunto. A diretora-geral da AT tão pouco sabia algo. Para acalmar a opinião pública, havendo necessidade de se “sacrificar” alguém, foi vitimado o diretor das Finanças do Porto, distrito onde decorreu a ação. Parece ter sortido efeito, pois, saciada pelo sangue derramado, a comunicação social passou ao próximo escândalo. A oposição ao Governo, na Assembleia da República, distraída, deixou passar o caso sem a ênfase que merecia quanto à atribuição de responsabilidades.
4.Só quem não tem um mínimo de perceção sobre o caráter profundamente hierárquico da Administração Pública, onde nenhum funcionário dá um passo sem pedir autorização superior, acreditará que, previamente ao despoletar das referidas atuações, ou aquando do planeamento anual, toda a cadeia hierárquica, até ao Ministro das Finanças, pelo menos, não tinha conhecimento das mesmas. Tinha, sem dúvida.
5.Porém, por absurdo, admita-se que não teve. Em tal contexto, estariam as hierarquias políticas isentas de responsabilidade? Não, de modo algum, dados os incentivos monetários e outros com que envolvem a estrutura operacional da AT, que fomentam atuações como as referidas. Desde 1997, ano em que foi criado, o Fundo de Estabilização Tributário (FET) é alimentado por uma percentagem das cobranças coercivas efetuadas pela AT, fixada anualmente pelo Ministro das Finanças (em geral 5%). Se se tiver presente que tais cobranças, no passado recente, atingiram 1.600 milhões de euros anuais, essa percentagem representa uma transferência para o fundo de cerca de 80 milhões de euros. A quase totalidade desse montante é para pagar “prémios de produtividade” aos trabalhadores da AT. Numa envolvente como esta, em que o salário de quem cobra depende do montante cobrado, desaparece a moderação e ponderação das atuações. Vale tudo, a cobrança, devida ou indevida, vem em primeiro lugar. E se ao incentivo monetário se juntar um outro, o de um objetivo de cobrança anual demasiado ambicioso, então a pressão sobre os agentes é exponenciada, as atuações no terreno podem, facilmente, ultrapassar os limites da legalidade, os direitos dos contribuintes serem atropelados. Chega-se ao cerne da questão: a responsabilidade primeira não é de quem ultrapassa tais limites, é de quem implementa e cauciona incentivos de desempenho que provocam efeitos perversos, como os referidos.
6.São diversas as áreas do Conhecimento que estudam estes incentivos, e os efeitos nefastos que lhes podem estar subjacentes. Mais, a área dos impostos é terreno propício à opressão e arbitrariedade, fruto da pressão à cobrança imposta pelos suseranos e dos errados incentivos dados aos “cobradores”. A História está cheia de lições para os dirigentes políticos que queiram evitar repetir erros passados. Um interessante livro neste domínio é “For Good e Evil – The Impact of Taxes on the Course of Civilization”, de Charles Adams (Madison Books, 1993). Há milhares de anos, já era visível que a “pressão colocada no topo do sistema de cobrança produzia opressão na base do mesmo” (pp.23). Na atualidade, em que supostamente se vive num “estado de direito”, as barreiras legais à arbitrariedade da máquina tributária tendem a não proteger adequadamente os contribuintes, como era suposto, muito em especial por inoperância tempestiva dos tribunais.
7.Não se pretende com a argumentação produzida, que coloca o ónus da responsabilidade do lado dos responsáveis políticos, desculpabilizar a atuação de quem foge aos seus deveres de contribuir. A regra tem de ser exigir a cada um o cumprimento das respetivas obrigações. Mas que isso seja feito dentro da salvaguarda dos respetivos direitos, preservada sempre a regra mínima da proporcionalidade da atuação.
Por outro lado, não pode cada contribuinte, face ao incumprimento dos seus concidadãos, encolher os ombros e, com o olhar triste de quem lamenta não ter oportunidade de fazer o mesmo, pensar “aquele tipo [o incumpridor] é que é esperto”. Contribuir para o regular funcionamento da sociedade, pagando os impostos devidos e reprovando socialmente quem adota comportamento de evasão fiscal, faz parte dos deveres de cidadania.
No entanto, não pode, também, cada um, face aos desmandos da máquina tributária e dos seus responsáveis, optar pela passividade, encolher os ombros e pensar “não é nada comigo”. É com cada um de nós, e como tal temos de gritar, bem alto, a nossa indignação. Só desse modo se pode condicionar a atuação de uma máquina movida por incentivos perversos, lutar contra o medo que ela vem instalando na sociedade. Uma certeza: hoje são os outros as vítimas, amanhã podemos ser nós.