Mário Tavares da Silva, Expresso online (013 03/04/2019)

De há uns anos a esta parte, assiste-se a um crescente protagonismo, outrora para muitos inimaginável, das matérias e múltiplas questões ligadas à ética e às dimensões que a mesma em regra convoca. É, pois, sem surpresa de espécie alguma que constatamos que nas escolas, dos mais pequenos até às dos mais graúdos, universidades, centros de investigação, órgãos de soberania e, ainda, numa densa constelação de outras organizações públicas e privadas, os seus responsáveis se enleiam na procura de respostas para as diversas questões da ética, emprestando muito do seu tempo e recursos ao desenvolvimento das inerentes e morosas tarefas que as mesmas reclamam.

Vivemos, por assim dizer, numa insuflada bolha de ética, qual espécie rara de última moda em que socialmente soa sempre bem e dá curriculum dizer que se é ético, fazer tweets sobre ética e ter likes, muitos de preferência, mesmo de quem de ético tem pouco ou mesmo quase nada. Por toda a parte, mas sobretudo nos muitos palcos que as novas plataformas de comunicação nos proporcionam, tornou-se prática corrente discursar sobre a ética, sobretudo, estranhamente, sobre a falta de ética dos outros, como se nós próprios encarnássemos o paladino da ética ou, como a miudagem de hoje gosta de verberar nas redes sociais, a última bolacha do pacote.

Por breves momentos, esta nova moda traz-me à memória o velhinho jogo da “Glória” que, numa das suas mais conhecidas e últimas versões, nos coloca numa selva, chefiada pela zebra “Glória”, aqui e agora para este efeito rebatizada de zebra “Ética” que, de forma altiva e muito respeitável, dita quem avança, recua e, sobretudo, quem fica preso nas inúmeras armadilhas existentes ao longo de todo o percurso.

É um jogo ardiloso e de sofrida resiliência, viciando quem o joga e fazendo sofrer quem dele tem que sair ou quem nele nunca logra participar. As regras, como não podia deixar de ser, são simples e de fácil aprendizagem. Basta ler e lançar os dados.

Neste nosso jogo da zebra “Ética” todos os jogadores partem do zero, pois todos se presumem éticos até prova em contrário, sendo que aquele que o não é, por qualquer razão objetiva e por todos tida como incontornável, nele não pode participar.

Nesta medida, a questão do jogo da Zebra “Ética” está muito bem identificada para quem quiser jogar.

Seremos nós capazes, nas adversidades e contrariedades que a agitada e crepitante vida nos atravessa no caminho, de alcançar a desejada glória de sermos éticos?

Ou ficaremos, pelo contrário, resignados e impotentes, retidos e sequestrados nas nossas próprias armadilhas e noutras que outros tantos, estrategicamente, nos pretendam colocar no caminho?

Este é o moderno dilema do jogador da ética. Para a alcançar e assim sobreviver eticamente entre os seus pares, está preparado para fazer de tudo. Tweetar, religiosa e abnegadamente, sobre a ética, escrever infindáveis crónicas sobre ética, como aliás eu próprio faço para me manter vivo no jogo, elaborar pormenorizados códigos de ética, urdir códigos de conduta polvilhados de celestiais princípios e publicitar intricados regulamentos de controlo, quase sempre pejados de normas tão complexas na sua redação que se anulam reciprocamente, desvirtuando o sentido último que inicialmente se pretendeu perseguir. As entidades estão hoje, mais do que nunca, fortemente pressionadas por uma agenda mediática ditada na implacável arena das redes sociais, que não controlam, procurando por todos os meios fazer permanentemente prova de vida. Todos querem jogar e ninguém está disposto a perder.

Não obstante, assiste-se nesta irrespirável atmosfera a uma prevalência da forma sobre a substância, pois mais do que documentos textualmente estruturados e semanticamente refinados, como os que pululam atualmente pelas diferentes organizações do Estado, o que importa na realidade é criar condições efetivas para que tais documentos possam ter uma aplicabilidade prática real e uma adequada e eficaz consecução dos objetivos inicialmente traçados.

Impõe-se, nesta medida, aplicar e fazer aplicar os instrumentos éticos de que as organizações dispõem nas suas mais variadas formas, convocando todos para um resultado que a todos aproveita.

Os códigos, éticos e de conduta, devem constituir nesta medida um incentivo efetivo à implementação de melhores práticas entre os colaboradores das entidades, envolvendo-os e impelindo-os ao seu adequado cumprimento, avaliação e controlo e, sempre que necessário, à sua imediata e esclarecida revisão.

Espera-se, neste contexto, que tais documentos, formalmente irrepreensíveis em muitos dos casos, possam ser algo mais do que meros repositórios de boas intenções, acrescentando-se à sua natureza eminentemente programática um efetivo valor na atividade desenvolvida.

É que tal como o jogo da “Glória” sofreu múltiplas versões na sua já longa e fascinante existência, também as organizações devem repensar permanentemente o tabuleiro de riscos em que desenvolvem a sua atividade, pois os riscos de ontem poderão não ser mais os de hoje e os de hoje serão, certamente, bem diferentes dos que encontrarão amanhã.