Ricardo Passos, Visão online

O circo mediático montado à volta de Berardo mais não serve do que desviar as atenções dos verdadeiros problemas. Importa perceber o que aconteceu, como aconteceu e que não se repita, porque no fim quando são feitos os “write-offs” das más operações, o Estado (Nós) é que assumimos as perdas.

A comissão de inquérito à recapitalização da Caixa Geral de Depósitos e à gestão do banco tem tido o papel ímpar de mostrar ao comum dos portugueses porque é que o Estado (leia-se nós) foi chamado a injectar mais dinheiro no banco e como é que determinados actos de gestão foram aprovados e supervisionados.

A CGD tem por Missão “contribuir de forma decisiva para o desenvolvimento económico nacional, num quadro de evolução equilibrada entre rentabilidade, crescimento e solidez financeira, acompanhado por uma prudente gestão dos riscos, que reforce a estabilidade do sistema financeiro nacional”. Portanto não é de todo aceitável que a CGD seja utilizada como instrumento para financiamentos mal justificados e muito menos quando a prática é recorrente, do conhecimento da supervisor e nada tenha sido feito.

Tenho aqui de voltar ao tema José Berardo. Sim, eu sei, já toda a gente falou dele, inclusive nesta secção o Pedro Moura fez sobre ele uma crónica deliciosa. Mais concretamente quero referir-me à operação de financiamento pela CGD da compra de acções do BCP. O circo mediático montado à volta de Berardo mais não serve do que desviar as atenções dos verdadeiros problemas. Importa perceber o que aconteceu, como aconteceu e que não se repita, porque no fim quando são feitos os “write-offs” das más operações, o Estado (Nós) é que assumimos as perdas.

Não me custa de todo aceitar, apesar da fantasia que a possa acompanhar, a “teoria da conspiração” do Filipe Pinhal. Eu também acredito que alguém (?) definiu como desígnio tomar uma posição de controlo no BCP, alguém (Berardo) deu a cara e alguém (CGD) financiou. A ser assim, percebe-se porque é que ninguém pediu a José Berardo colateral da operação para além das próprias acções. Percebe-se também o à vontade com que ele afirma na sua audição que “ele não deve nada a ninguém” e que até “fez um favor aos bancos”. Para o financiamento ser assim, não tendo o mesmo seguido os processos estabelecidos no normativo da CGD, percebe-se também que alguém foi conivente com esse desígnio.

O relatório da E&Y é taxativo. Existe um elevado número de operações que levaram a prejuízos que ou não tinham parecer de risco ou não tiveram parecer de risco favorável, ou tiveram parecer de risco condicionado, mas depois as condições não foram acauteladas. Porquê? Como? A audição dos ex-administradores da CGD na comissão de inquérito pauta-se por “não me lembro”, “antigamente era normal ser assim”, “é preciso ver além do parecer do risco”, “pensei que estava tudo bem”. Tem sido deprimente ouvi-los.

E porque é que depois do empréstimo, as acções dadas em colateral não foram vendidas? Segundo Faria de Oliveira, “não foi por não quererem executar, que não as executámos”, mas se a CGD vendesse as acções do BCP poderia por em risco aquele banco. “Era um risco sistémico significativo”. Que eu saiba, risco sistémico é da competência do Banco de Portugal, não da CGD. Foi promovida alguma reunião com o BdP e com os outros bancos do sistema? Além disso, o preço de venda não influencia os rácios de solvabilidade do BCP, é apenas o valor de referência entre quem compra e quem vende. É claro que ao vender, o preço iria baixar e como tal iria influenciar todos os colateriais de empréstimos que a CGD tinha e como tal poderia ter de fazer execuções em série, mas a avaliação dos colaterais tem de ser feita permanentemente. Não venderam, mas não foi por isso que o valor das acções não desceu constantemente. Onde foi parar o risco sistémico? No fim a CGD ficou com uma mão cheia de nada como colateral. A decisão de não executar a venda faz algum sentido?

Pensar que nos Valores da CGD e dos seus colaboradores está escrito: “Rigor…”, “Transparência na informação…”, “Segurança das aplicações…”, “Responsabilidade organizacional e pessoal pelas próprias acções…”, “Integridade, entendida como o escrupuloso cumprimento legal, regulamentar, contratual e dos valores éticos e princípios de atuação adotados”, “Respeito pelos interesses confiados…”

Não consegui reconhecer estes valores nas entrevistas. Mais franco foi Armando Vara: “Manda quem pode”.

Exemplar: Almerindo Marques. Não compactuou com práticas com que não concordava e demitiu-se, alertando quem tinha de alertar.

Uma palavra para a Supervisão. Desde os alertas de Almerindo Marques em 2002 a Vitor Constâncio até à auditoria realizada pela E&Y a pedido de Paulo Macedo, aparentemente nada foi feito. Pelo meio, já em 2011 o próprio Banco de Portugal havia detectado problemas graves e insuficiências nos processos de concessão e controlo de crédito e emitido um relatório. Mariana Mortágua confrontou Carlos Costa com esse relatório e ele não soube explicar que recomendações concretas haviam sido emitidas e qual o grau de cumprimento das mesmas.

O próprio Carlos Costa enquanto Administrador da CGD no período 2004-2006 deveria conhecer esses processos. Mas em entrevista à SIC diz que só “ocasionalmente” ia às reuniões do conselho alargado de crédito, porque “não tinha competências de crédito, nem competências de acompanhamento de clientes, nem de risco, nem de controlo, portanto a minha participação no conselho alargado de crédito destinava-se a assegurar o número de administradores necessários para que a decisão pudesse ter lugar”. Ou seja, fazia número. Fazendo número, criava quórum e assim na prática permitia que fossem tomadas decisões sem que o número necessário de administradores competentes estivessem presentes. Certamente não é uma boa prática.

Na minha opinião, quer o processo de nomeação dos Administradores da CGD, quer o de nomeação do governador do Banco de Portugal, entidade encarregue da Supervisão, deveria ser submetido a escrutínio alargado. Veja-se o exemplo dos Estados Unidos onde o presidente do FED é proposto pelo Presidente mas tem de ser confirmado por uma comissão especial do Senado no seguimento de um conjunto minucioso de entrevistas e análise curricular.

Por cá, Administradores, Supervisores e Auditores que só vêem quando são instados a ver, não são responsabilizados pelos seus actos. As denúncias morrem sem investigação. Não há consequências para a má gestão.

Bendita Comissão de Inquérito. Vamos confiando nas comissões de inquérito parlamentares para dissipar o nevoeiro que cobre tudo o que diz respeito à banca em Portugal. Esperemos que o futuro seja melhor.