Ana Clara Borrego, Visão online

Não obstante o “fisco” ser um órgão da polícia criminal e, consequentemente, ter autoridade e poderes legais para proceder à cobrança coerciva de dívidas fiscais, há procedimentos legais a cumprir, nomeadamente que garantam a possibilidade de o contribuinte se defender – note-se que o lançamento de valores em dívida no sistema por parte da AT, não está incólume de erros e outros fatores que possam colocar em dúvida a sua existência, o seu valor, ou a sua legalidade, pelo que, é imprescindível que se mantenha inviolável o direito de defesa do contribuinte.

Numa das minhas últimas crónicas, a propósito das iniciativas encetadas pelo Ministério das Finanças no sentido de investir na educação e cidadania fiscais dos contribuintes e, consequentemente, na cooperação entre o fisco e contribuintes, em jeito de elogio, referi que “O ano 2019, neste contexto, ficará marcado como aquele em que o Ministério das Finanças, sob a égide do Ministro Mário Centeno – na minha opinião, por influência das suas funções no Eurogrupo – recuperou a ideia da Educação Fiscal como “ferramenta” para a cidadania naquele contexto, voltando a fomentar iniciativas naquele âmbito.”

Recordo que aquele meu enaltecimento às capacidades visionárias do Ministro Centeno se deveu, em particular, à assinatura de um protocolo entre a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) e a Agência para a Modernização Administrativa, cujos objetivos deixavam antever a intenção de mudança do arquétipo de atuação da “máquina fiscal” para com os contribuintes, isto é, o “fisco” começava a dar indícios de pretender promover o aumento do cumprimento fiscal voluntário, colocando-se numa atitude de facilitador do cumprimento fiscal, por abandono da sua tradicional figura repressiva, que vê em cada contribuinte um potencial incumpridor, o qual, consequentemente, deve ser tratado como tal.

Lembro que terminei essa crónica a partilhar, com os leitores, as minhas dúvidas acerca da viabilidade desta tentativa de criar condições para ir construindo uma espécie de “acordo de paz” entre a AT e os contribuintes: por um lado, duvidando da capacidade da AT para ter perseverança suficiente para construir com os contribuintes uma relação de confiança, cuja colheita de frutos demoraria anos, por outro lado recordando que tal transformação implicaria uma total mudança de atitude, postura e de mentalidade, quer dos cidadãos-contribuintes, quer dos funcionários do “fisco” no exercício das suas funções e, lembrava, que tais mudanças poderiam delongar-se no tempo mais de uma geração.

Infelizmente, pouco tempo demorou (cerca de um mês) a verificar-se que o meu ceticismo não era infundado.

O final do mês de maio e princípio de junho foi, assim, profícuo em polémicas envolvendo a atuação (ou intenção de atuação) por parte da AT em prol da cobrança coerciva de impostos, algumas com contornos a tocar o “pidesco”, de legalidade, no mínimo, duvidosa, e com alguns atropelos a direitos fundamentais dos cidadãos-contribuintes.

Destaco do pacote de ideias “inovadoras” a, já célebre, “Ação sobre Rodas”, levada a cabo na saída da A42 para Alfena (Valongo), em ação conjunta da AT e da GNR, a qual foi, quase de imediato, cancelada pelo Ministério das Finanças, tal foi a onda de indignação que gerou ao ser noticiada pela comunicação social.

Neste ponto, poderão, os leitores cidadãos-contribuintes cumpridores, muito legitimamente, questionar-se: Mas pagar impostos não é, também, um dever para com a sociedade? E quem não o cumpre não estará a “atropelar” os direitos de todos os outros cidadãos que o fazem?

Pois, efetivamente, como referiu, e muito bem, José Casalta Nabais, pagar impostos é um dever fundamental da vida em sociedade; contudo, permitir aos contribuintes o direito à defesa é, também, uma obrigação do Estado, de forma a afiançar o equilíbrio e a justiça da sua própria atuação e daqueles que em seu nome atuam.

Deste modo, não obstante o “fisco” ser um órgão da polícia criminal e, consequentemente, ter autoridade e poderes legais para proceder à cobrança coerciva de dívidas fiscais, há procedimentos legais a cumprir, nomeadamente que garantam a possibilidade de os contribuintes se defenderem – note-se que o lançamento de valores em dívida no sistema por parte da AT não está incólume de erros e outros fatores que possam colocar em dúvida a sua existência, o seu valor, bem como a sua legalidade, pelo que, é imprescindível que se mantenha inviolável o direito de defesa do contribuinte.

A desproporcionalidade de meios é outra questão problemática que se levanta. Será que os meios justificaram a finalidade? Caso se tratasse de uma megaoperação de combate à grande fraude e evasão, na minha opinião, justificar-se-ia os meios envolvidos, bem como o fator surpresa, todavia, de acordo com o que foi noticiado por vários órgãos de comunicação social, estavam em causa pequenos contribuintes, com dívidas de montante reduzido – verifica-se, pois, na minha perspetiva, uma grande desproporção dos meios utilizados face aos objetivos a atingir.

A este “episódio” seguiram-se mais duas notícias que, a verificarem-se como verdadeiras, nada abonam a favor do Estado, no que ao respeito pela vida privada dos seus cidadãos concerne. Estou a referir-me à ideia (entretanto cancelada) de, imediatamente antes dos copos d’agua, a AT interpelar os noivos com pedidos de informação sobre os fornecedores de serviços dos casamentos, e, quiçá, apreender o champanhe e o bolo da noiva; bem como a notícia avançada por vários meios de comunicação social de que a AT, alegadamente, terá uma equipa que vigia e fotografa alguns contribuintes.

O “fisco”, nesta espécie de “caça ao devedor/incumpridor”, como se costuma dizer na gíria, “não ficou bem na fotografia” e o que arrecadou não justifica o dano causado na, já frágil, relação Estado/contribuintes. De todo este enredo ficou no contribuinte a ideia de um Estado repressor, que não ataca o grande contribuinte, mas que persegue, de forma desproporcional, o pequeno.

Valha-nos, pois, a lucidez de quem ordenou os cancelamentos daquelas ações!