Pedro Moura, Visão online
"O maléfico Berardo é um monstro, só porque é mais desbocado que os outros, que nalguns casos até fizeram pior? O ladrão Berardo roubou tudo e todos à vista desarmada, e quanto aos que lhe abriram as portas dos nossos cofres?”
“Berardo para aqui, Berardo para ali, Berardo cão tinhoso, Berardo a fazer o pino, Berardo é um manhoso, Berardo do pagode, Berardo do calote, Berardo criminoso, Berardo aldrabão, Berardo Berardinho, Berardo Berardão, Berardo seu maroto, tira daí a mão.” (quadra popular de autor desconhecido)
As últimas semanas têm sido pródigas na produção de virgens ofendidas e de doutores da moral e da justiça. Temos a agradecer a essa jóia comendada de pessoa que é José Manuel Rodrigues Berardo (Joe para os amigos). Finalmente a República Portuguesa descobriu a sua besta negra (J.Sócrates não qualifica pois ainda há quem o defenda), o causador de todos os males que nos têm assolado nas últimas décadas. Tudo devido àquela deslumbrante gargalhada que Joe desferiu na Assembleia da República, que atingiu a tudo e todos como uma revelação divina.
A manifestação de horror, estupefação e temor atingiu toda a nação, desde o Presidente da República ao cidadão comum, passando obviamente por toda a classe dirigente empresarial, política e a esmagadora maioria dos órgãos de comunicação social. “Como é possível que o Joe, o grande Joe tenha enganado a todos assim? Como pode ele ser tão maquiavélico, aldrabão e ainda ter a desfaçatez de se armar em Joker perante todo o país de forma tão desassombrada? Têm de fazer alguma coisa, têm de o meter na prisão!”
Temos um bode expiatório, com evidente arte para a burla. Mas há muito que ‘se sabia’ dos negócios do Joe em particular, e de como eram (são) as coisas nestes corropios e permutações entre política e políticos, empresas e empresários em Portugal. A geração da elite de ladrões (meu termo) que tem, em grande medida, gerido Portugal nas últimas décadas tem feito um excelente trabalho para fazer o que quer e ir saindo impune. Basta geralmente manter a rede de ‘conhecimentos’ e ‘influências’ bem oleada, entrar no jogo dos favores, saber quando lamber o rabo aos superiores da casta e esperar a sua vez com paciência e zelo espartanos. Se descobertos com a boca na botija, é fazerem-se de sonsos, alegarem súbitas amnésias seletivas e tentarem passar (as culpas) a outro e não ao mesmo (criancinhas mimadas não fariam melhor). E, geralmente corre bem, como se tem visto. Tendo em conta a gravidade das falcatruas que se sabem existir, a taxa de acusações e, sobretudo de condenações destes casos continua em valores saudavelmente homeopáticos.
Mas o Joe é uma personagem, e está-se realmente a borrifar um bocado mais que a elite da corte (porque nunca fez realmente parte dela) para o que acham dele. E borrifando-se, deu aquela gargalhada assombrosa, que tendo provocado um arrepio em todos, provocou vibrações especialmente fortes na flexível coluna vertebral daqueles que têm o rabo mais entalado (leia-se grande parte da elite política e empresarial cá do burgo).
O caso do Joe faz-me lembrar o caso do #MeToo. Muita gente foi assediada pelo Harvey Weinstein e por tantos outros. Para além do mero assédio, naturalmente aconteceram muitos casos de práticas sexuais indevidas sob coação, o chamado ‘subir na horizontal’. Mas a grande questão de que não se falou é que toda a gente (não só os assediadores e os assediados) sabia o que se passava. Gente impecável do cinema, atores, atrizes, realizadores, produtores, financiadores, jornalistas, etc, tinham total e completo conhecimento destas práticas da ‘Indústria’, e ficaram calados. Certamente também aqui havia muito rabo entalado (no pun intended). O #MeToo, antes de ser hashtag, foi uma situação perfeitamente ‘normal’, e foi feito um ótimo trabalho por todos (sim, também pelos que optaram por olhar para o outro lado) para ficar tudo impecavelmente contido no meio em causa. Depois veio a hashtag e, como se sabe, a par das vítimas e dos monstros vieram também as virgens ofendidas e os doutores da moral e da justiça.
Voltando ao tema local, cá por Portugal também toda a gente ‘sabia’ do Joe (e dos outros). E o que fizeram? E o que fazem? O maléfico Berardo é um monstro, só porque é mais desbocado que os outros, que nalguns casos até fizeram pior? O ladrão Berardo roubou tudo e todos à vista desarmada; e quanto aos que lhe abriram as portas dos nossos cofres? O vilão Berardo enganou toda a gente; e quanto às luminárias que fizeram dele herói da nação? O espertalhão do Berardo ainda se vai safar; e quanto ao sistema de justiça que permite algo assim?
O que esta ‘gente’ toda faz é tentar passar o mais despercebida possível para que as ondas de choque da gargalhada do Joe não os apanhem. Aqueles com menos capacidade para passarem despercebidos tendem a oscilar entre os papéis de virgem ofendida e doutor da justiça e da moral. Se a hipocrisia matasse... talvez se resolvesse um problema ou dois.
E não podia acabar esta crónica sem fazer uma Berardice (caramba, o homem tem os seus méritos, e rir faz sempre bem): para melhor fixar este episódico cómico-trágico do nosso quotidiano, proponho que se cunhe uma nova hashtag para ‘a malta’ poder fazer as habituais figuras tristes a rasgar as vestes publicamente ou a propor o regresso ‘a melhores tempos’ nas redes sociais: #MeJoe