Alexandre Almeida, Jornal i

Não podemos ignorar a natureza humana e a das instituições, nem assumir que tudo será agora diferente só porque há um rio novo para atravessar.

Sou sportinguista, sofredor por destino e sonhador convicto. Sempre que há um “erro grave” potencial, no estádio de Alvalade, ainda imperam insultos num bom português em desuso, incluindo impropérios de primeira água como salafrário. Tal contrasta com a simplicidade e acutilância do meu Norte adotivo em que rapidamente se usa o vernáculo mais intenso e puro para revelar o estado de alma e de insatisfação perante a injustiça. Futebol à parte, mais do que discutir se o árbitro do último jogo é corrupto, incompetente ou simplesmente humano, apetece-me transpor esse vernáculo para caracterizar e qualificar as práticas do setor financeiro e para o regulador. Cada dia temos um novo episódio repulsivo do desplante, da arrogância e da incúria que marcaram uma época de desenvolvimento selvático da economia portuguesa fortemente alicerçada no sistema financeiro e na conivência, passividade ou incapacidade do sistema político em regular. A última novela é repulsiva e atentatória da paz social. Descobrimos que dever 1000 milhões de euros não é relevante e é até um favor do Berardo à CGD. Ao mesmo tempo, muitas famílias perderam as suas casas na crise, perdem as suas casas por desemprego e perdem as poupanças do seu trabalho pelos devaneios, compadrios, irresponsabilidade e impunidade do sistema financeira.

Descobrimos que se podem obter créditos de milhões de euros com cartas de conforto e sem garantias enquanto aos jovens das startups portuguesas se lhes pedem o carro, a casa, o cão e a sogra como garantias de um empréstimo. E, pasme-se, deparamos com um Estado verdadeiramente impotente na regulação e na justiça social e que nada faz a não ser observar e pagar a conta.

Não contesto a importância da banca, mas podemos pelo menos exigir mais transparência e responsabilidade, menos leviandade com os “fortes” e menos arrogância com os fracos. A Banca tem responsabilidades sociais para além de patrocinar uns eventos e uns lares. E o Estado tem um dever com todos nós de garantir a justiça e a paz social e não se demitir de ser forte com os fortes, rejeitando de forma veemente estas práticas, o desplante e desrespeito a que assistimos na televisão, e assumindo de forma efetiva o seu papel de regulador. Para isso, importa perceber que nada mudou. Não é porque alguns gestores foram substituídos, porque os ativos maus foram absorvidos pelos programas de auxílio do Estado e agora a banca até já começa a dar lucro, que algo mudou efetivamente e que, sobretudo, o sistema se tornou transparente.

Temos de compreender a natureza das instituições financeiras e das pessoas que as governam, os seus interesse e motivações e não assumir que porque mudámos os cromos, tudo será diferente. Não é linguagem, a postura ou o saldo bancário que garantem de verdadeira integridade, qualidade e retidão.Já devíamos ter aprendido isso. Mas se não o aprendemos, deixem-me resumir-vos a fábula do sapo (em algumas versões tartaruga) e do escorpião de Tushkan. Um escorpião queria atravessar o rio mas não sabia nadar. Pediu ajuda a um sapo. O Sapo respondeu que não o faria pois ele acabaria por o matar. Mas o escorpião retorquiu que nunca o mataria porque senão morreria também no meio do rio. Perante tal argumento, o sapo aceitou atravessar o escorpião. A meio da travessia, o escorpião matou o sapo e antes de morrer, o sapo perguntou: “Porque fizeste isso? Vamos morrer os dois!” E o escorpião respondeu: “porque é a minha natureza”.

A moral desta história é a de que não podemos ignorar a natureza humana e a das instituições, nem assumir que tudo será agora diferente só porque há um rio novo para atravessar. A banca não é o diabo mas não foi por terem mudado as pessoas que passou a ser santa ou que algo efetivamente mudou nas suas práticas porque tal seria contranatura. E a capacidade de regulação do Estado faliu. Não foi suficiente e é impotente para fazer algum tipo de justiça. É com base nesta premissa que o sistema deve ser pensado e regulado de forma efetiva, alterando os pressupostos de financiamento e impondo regras de funcionamento, principalmente, no âmbito de ajudas e programas públicos.

Como sociedade em transição temos de ter coragem de mudar, de exigir mais e de fazer diferente. Vêm aí os incêndios. Devemos venerar quem é verdadeiramente herói todos os dias, os que dão sem nada pedirem, os que lutam corajosamente contra a fúria da natureza, a incúria do Estado (e de todos nós), o crime de alguns e os interesses económicos dos que o alimentam. Esqueçamos os salafrários (como gostaria de empregar um vernáculo mais nortenho) e exijamos mudança ou tudo será igual!