Mário Tavares da Silva, Jornal i

O nepotismo não é pois, em primeira linha, uma questão de legalidade. É, antes pelo contrário, um assunto de bom senso, convocando, nessa medida, a mais elementar aplicação dos princípios gerais da boa administração, da igualdade de oportunidades no acesso ao exercício de cargos públicos e, sobretudo, do respeito pela dignidade da pessoa humana, condição primeira e absoluta para a formulação de juízos de natureza ética.

Uma das discussões que surge amiúde na arena política prende-se com as situações de alegado favorecimento de familiares e de amigos dado pelos decisores políticos no quadro de nomeações para o exercício de cargos públicos, vulgo nepotismo.

Historicamente, importa aqui recordar que este fenómeno é associado à prática desenvolvida por determinados papas e bispos que destinavam alguns cargos a sobrinhos seus (ou filhos ilegítimos) visando, sobretudo, tal como sucedia com os detentores feudais de cargos públicos, ter herdeiros e não apenas sucessores.

Após largos anos, este fenómeno viu ampliada a sua aplicabilidade à vida política, passando a contemplar não apenas os parentes como também os amigos, numa espécie de endogamia que alguns se aprestam a ajuizar como pervertendo as regras da democracia e, muito em particular, da igualdade no acesso a cargos públicos, ao passo que outros entendem como traduzindo um procedimento perfeitamente normal e, como tal, não merecedor de qualquer juízo de reprovação ético ou social.

Independentemente da leitura que cada um possa legitimamente fazer, a verdade é que a questão não é nova e perpassa, de há muitos anos a esta parte, sem exceção, todos os partidos que povoam o espetro político. É, incontornavelmente, um fenómeno de natureza estrutural que reclama, como tal, a adoção de soluções duradouras, capazes de reunirem, nessa exata medida, o consenso de todos os atores políticos ou partidários e não, por indesejáveis, de medidas legislativas de vocação eminentemente paliativa, porquanto estas, em regra ditadas por interesses meramente conjunturais, estariam irremediavelmente condenadas ao fracasso.

Não nos compete aqui fazer quaisquer juízos de valor ou processos de intenção sobre a bondade, ou falta dela, em que tais situações ocorreram no passado como no presente. Deixamos essa avaliação aos mecanismos de controlo e de responsabilidade democráticas que desde a fundação da nossa ainda jovem democracia, sempre foram capazes de responder e de estar à altura desse e doutros desafios bem mais difíceis.

Pretendemos, apenas, dar algumas pistas de reflexão que possam, eventualmente, ser utilizadas para dirimir de forma equilibrada e sensata algumas das dificuldades encontradas no enquadramento das diversas questões subjacentes.

Como ponto de partida, recordemos que o tratamento dado pelos diferentes Estados europeus difere em alguns aspetos essenciais. Veja-se, por exemplo, o caso da Noruega, onde, contrariamente ao que sucede noutros países, é ilegal o exercício de funções no mesmo governo por dois membros da mesma família. Nas próprias academias universitárias europeias, tem sido também frequente instituir a proibição de contratar parentes, mas não amigos, dos membros que as integram. Deste modo, o ponto central passa então por procurar responder à questão de saber se a opção por uma proibição total é ou não injusta.

É verdade que em alguns casos, a situação familiar poderá ser tida em consideração, porquanto em certos cargos políticos, é expetável que os respetivos titulares optem por escolher, como seus colaboradores, pessoas em quem possam confiar e que são seus amigos ou colegas no partido ou nos movimentos em que militam.

Mas será sempre esse procedimento eticamente aceitável?

Dependerá, no caso, de uma avaliação rigorosa de todas as variáveis que possam estar em confronto e nunca de leituras generalistas que, por regra, se podem até revelar precipitadas e injustas para com alguns dos nomeados.

Haverá então que, neste contexto, procurar respostas para múltiplas e intrincadas questões pois esse é o desafio maior que se coloca aos decisores políticos.

Questões, por exemplo, tais como a de saber se podem os parentes ser nomeados nos casos em que os decisores políticos com eles mantiverem boas relações, ou se não será a confiança um elemento suficientemente robusto para suportar uma designação ou nomeação para o exercício de cargos públicos ou, ainda, se não será mesmo a confiança tanto maior e mais sustentada quando lhe subjaz uma relação de sangue.

Recordemos, a este propósito, que quando o Presidente John F. Kennedy nomeou o seu irmão Procurador-geral da República, se tratou inegavelmente de um caso de nepotismo. Neste caso, contudo, de um nepotismo saudável e eticamente calibrado, porquanto o nomeado revelou ser, sem dúvida, um quadro extremamente bem qualificado, circunstância que aliada a um bom relacionamento que mantinha com o seu irmão, veio efetivamente apotenciar um melhor desempenho no cargo e uma aceitabilidade social da própria nomeação.

Nas situações em que o critério é o da confiança, a questão que se pode colocar é a de se saber se não será preferível criar comissões de seleção, eventualmente de natureza externa aos partidos, que atestem, de acordo com parâmetros previamente definidos para as pastas setoriais respetivas, as competências da pessoa a nomear face ao cargo a preencher.

A ética pode ajudar aqui de forma decisiva, obrigando a publicitar de forma total e absolutamente transparente, os curricula dos designados. A transparência dos procedimentos e a inatacabilidade dos curricula dos nomeados, eventualmente suportados pela intervenção de uma comissão de recrutamento independente e exógena aos partidos, criará condições para um clima de aceitabilidade e de paz social. Já a opacidade e os amiguismos tenderão a ser socialmente escrutinados e fortemente penalizados pela comunidade.

Seria igualmente interessante pensar na criação de uma espécie de «unidade técnica de apoio aos membros do Governo» (UTAMEG), de funcionamento permanente, constituída de forma profissionalizada por técnicos de elevada competência, escolhidos em processos abertos, públicos e amplamente transparentes, e que serviriam os membros dos sucessivos Governos, independentemente da sua cor partidária.

Outra questão que se poderá suscitar é a de se saber se a qualidade de membro de um grupo, em particularde um grupo partidário, encerra em si mesmo uma qualificação suficiente para que o mesmo possa ser designado para o exercício de um cargo. A resposta a esta questão é complexa e exige ponderação e bom senso, ficando no entanto a nota de que posições muito extremadas podem levar a que a simples circunstância de pertença de um membro a um determinado grupo seja, por si só, fator de desqualificação, pois se existe terreno em que o princípio da igualdade de tratamento assume um papel absolutamente capital é neste domínio, procurando evitar-se que homens e mulheres possam vir a ser desfavoravelmente discriminados no processo de atribuição de cargos pela simples circunstância de integrarem determinados grupos e não, como seria justo e expetável, pela rigorosa avaliação das suas efetivas qualificações profissionais.

O nepotismo não é pois, em primeira linha, uma questão de legalidade. É, antes pelo contrário, um assunto de bom senso, convocando, nessa medida, a mais elementar aplicação dos princípios gerais da boa administração, da igualdade de oportunidades no acesso ao exercício de cargos públicos e, sobretudo, do respeito pela dignidade da pessoa humana, condição primeira e absoluta para a formulação de juízos de natureza ética.