Mário Tavares da Silva, Visão online
Será importante também que os EM incorporem na legislação nacional, face aos padrões mínimos de controlo previstos na diretiva, normas de proteção mais elevada aos denunciantes, preenchendo, por essa forma, algumas “lacunas” que ainda possam subsistir.
No passado dia 16, o Parlamento Europeu, reunido em Estrasburgo, resolveu aprovar, com 591 votos a favor, 29 contra e 33 abstenções, o texto provisório da diretiva relativa à proteção dos autores de denúncias (whistleblower protection directive), facto que constitui, por si só, um momento marcante para o projeto europeu, em particular no que respeita, por um lado, à defesa de uma cidadania mais ativa e responsável e, por outro, a um maior escrutínio da atividade desenvolvida pelas mais diversas entidades junto dos cidadãos.
É, incontornavelmente, mais um importante passo que é dado depois de escândalos como os relativos ao Luxleaks, Panama Papers ou Football Leaks terem evidenciado à sociedade o papel fundamental que os denunciantes podem assumir na deteção e comunicação de atividades ilícitas lesivas do interesse público.
Este momento é ainda mais importante se tivermos presente a circunstância de atualmente a proteção oferecida aos denunciantes na UE se apresentar extremamente fragmentada e desigual, com apenas 10 Estados-Membros (EM) da UE a garantirem uma plena proteção aos lançadores de alerta (França, Hungria, Irlanda, Itália, Lituânia, Malta, Países Baixos, Eslováquia, Suécia e Reino Unido), contrastando com os restantes que se limitam a promover uma proteção parcial e limitada a setores específicos (como sucede no plano dos serviços financeiros) ou a certas categorias de trabalhadores por conta de outrem.
O futuro revela-se pois promissor e será absolutamente decisivo para que, mais à frente, possamos avaliar de que modo e com que resultados todos os interessados envolvidos neste novo desafio, desde ONG aos decisores públicos e dos sindicatos até às diversas entidades públicas e privadas, irão aplicar quotidianamente o novo enquadramento legal.
Procura-se, doravante, com o novo texto legal, garantir sobretudo uma proteção eficaz dos denunciantes na União Europeia (UE), prevendo-se, concomitantemente, um conjunto de canais de comunicação seguros para que possam ser efetivadas as denúncias e adotadas as medidas que se imponham como adequadas, em particular contra a intimidação e as represálias. São várias as áreas que a diretiva pretende recobrir, prevendo-se, para o efeito, um conjunto de normas mínimas comuns para a proteção dos denunciantes que se proponham alertar para eventuais situações de violação do direito da UE, em áreas como as relativas ao branqueamento de capitais, à fraude fiscal, à proteção do ambiente, da contratação pública, da saúde pública, da segurança dos produtos e dos transportes e, por fim, dos consumidores e dos respetivos dados pessoais.
Várias notas merecem ser destacadas neste novo e ambicioso pacote normativo.
Um primeiro aspeto prende-se com o facto das medidas de proteção serem aplicáveis aos denunciantes que, trabalhando nos setores público e privado, tenham obtido informações sobre infrações em contexto profissional, mas também aos facilitadores e a pessoas ligadas aos denunciantes que possam vir a ser vítimas de retaliação, tais como colegas ou familiares.
Um segundo aspeto a merecer atenção é o de ter sido introduzida uma maior flexibilidade na diretiva, autorizando-se o denunciante a que possa escolher o canal mais adequado para proceder ao alerta das violações em causa, quer seja a nível interno (dentro da organização onde trabalha) quer seja a nível externo (junto das autoridades competentes).
Este aspeto revela-se fundamental, dado que a diretiva assume que os denunciantes constituem fontes importantes, em particular para os jornalistas de investigação, pelo que a garantia de uma proteção eficaz dos denunciantes aumenta a segurança jurídica dos potenciais denunciantes, incentivando e facilitando a comunicação das mais variadas irregularidades também aos meios de comunicação social. Este é um ponto central de tal modo significativo pelo alcance que pretende assumir que impele o próprio legislador europeu a afirmar, perentoriamente, que a proteção dos denunciantes, enquanto fontes jornalísticas, é crucial para a salvaguarda do papel de vigilante do jornalismo de investigação nas sociedades democráticas.
Em terceiro lugar, cumpre referir a necessidade dos EM tomarem todas as medidas que se revelem necessárias para garantir a proibição geral de qualquer forma de retaliação, intimidação e represálias, pelo que se um denunciante sofrer represálias, deve ter acesso a aconselhamento gratuito e vias de recurso adequadas, incluindo medidas para impedir o despedimento ou o assédio no local de trabalho.
Em quarto lugar, e em ordem a beneficiarem de proteção, os denunciantes deverão ter motivos razoáveis para considerar, atendendo às circunstâncias e às informações de que dispõem no momento da denúncia, que os factos por si revelados são verdadeiros. Equivale isto a uma salvaguarda essencial contra denúncias maliciosas, levianas ou abusivas, que garanta que as pessoas que no momento da denúncia, deliberadamente e com conhecimento de causa, transmitam informações erradas ou enganosas, não possam vir a beneficiar de proteção.
Em quinto e último lugar, deve ainda referir-se que os EM terão dois anos para transpor as novas regras para a legislação nacional, sendo que podem, nesse contexto, introduzir ou manter disposições que sejam mais favoráveis aos direitos dos denunciantes do que as estabelecidas pela diretiva.
Para lá dos aspetos positivos evidenciados, revela-se decisivo que o estatuto jurídico dos denunciantes que recolhem e distribuem "informações secretas" possa ser clarificado na transposição, uma vez que continuam vulneráveis em muitos países europeus.
Será importante também que os EM incorporem na legislação nacional, face aos padrões mínimos de controlo previstos na diretiva, normas de proteção mais elevada aos denunciantes, preenchendo, por essa forma, algumas “lacunas” que ainda possam subsistir.
É ainda essencial garantir que quando os denunciantes se manifestam, eles possam estar absolutamente seguros de que estão legalmente protegidos, que serão ouvidos, que tipo de ações serão tomadas e, sobretudo, que a sociedade civil, jornalistas, políticos, ONG, entre outras, estarão ao seu lado quando a informação que revelem exponha atos de corrupção, independentemente da identidade dos respetivos autores.
Dado que a segurança nacional continua a ser matéria da exclusiva responsabilidade de cada EM, a diretiva não deverá ser aplicável a denúncias de infrações relacionadas com contratos públicos que impliquem aspetos de defesa ou de segurança se estes estiverem abrangidos pelo Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), em alinhamento com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).
O mesmo sucede no domínio das periclitantes e sempre delicadas relações entre advogados e clientes porquanto se perspetiva que não venha a ocorrer a afetação da proteção da confidencialidade das comunicações entre ambos ("segredo profissional") previsto ao abrigo do direito nacional e, se for caso disso, da União, em conformidade com a jurisprudência do TJUE.
Acresce que a diretiva não deverá afetar também a obrigação de manter a confidencialidade das comunicações dos prestadores de cuidados de saúde, incluindo as realizadas pelos terapeutas, com os seus doentes e dos processos clínicos ("privacidade médica") prevista ao abrigo do direito nacional e da União.
Como se antecipa, a avaliação da eficácia na implementação dos novos comandos legislativos contidos na diretiva de proteção de denunciantes dependerá, em larga medida, da maior ou menor ambição com que os EM decidam abraçar o projeto de transposição, acautelando níveis de proteção mais elevados, em particular em domínios onde o legislador comunitário se revelou bem mais parcimonioso.