Óscar Afonso, Jornal i
“A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano”
Perguntou se “o capitalismo deve ser o objetivo dos países que fazem agora os esforços para reconstruir a sua economia e sociedade”, para reconhecer que “A resposta é obviamente complexa. Se por capitalismo se entende um sistema económico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da consequente responsabilidade pelos meios de produção, bem como da livre criatividade humana no sector da economia, então a resposta é (...) afirmativa (...). Mas se por capitalismo se entende um sistema em que a liberdade (...) não está circunscrita a uma estrutura jurídica forte que a ponha ao serviço da liberdade humana na sua totalidade e que a vê como um aspecto particular da liberdade, o núcleo do que é ético e religioso, então a resposta é (...) negativa.”
Não apoiava nem o capitalismo nem o comunismo, nem propunha uma terceira via entre os dois ou algum modelo económico próprio. Considerava que a contribuição da Igreja é a doutrina social católica, que, no modo profético, “reconhece o valor positivo do mercado e da empresa, mas que ao mesmo tempo aponta que estes precisam de ser orientados para o bem comum.” Na exortação apostólica Ecclesia in America, em 1999, discutiu o “neoliberalismo” e acrescentou mais peso ao argumento de que a doutrina social católica continuava crítica das sociedades atuais voltadas para o mercado e as injustiças que perpetuam.
Tendo em conta as encíclicas Caritas in Veritate, a Deus Caritas Est e a Spe Salvi, o papel da Igreja estava também bem delimitado no pensamento económico do Papa Bento XVI. Não existe economia ética, ligada ao fator social, preocupada com o problema da desigualdade e empenhada em combater questões urgentes como a fome, sem valores morais extra-estatais, sem uma garantia de que a política tem de onde extrair princípios morais verdadeiros e, assim, humanizar o sistema económico. A Igreja teria esse papel, sem se confundir, mas ao mesmo tempo sem se sujeitar ao Estado, apresentando-se como a fonte de enriquecimento da política e da economia com princípios éticos, sem os quais a mentalidade técnica contemporânea seria incapaz de evoluir. O papa Bento XVI desejava lembrar às nações que o motor da sociedade é o Homem, não os instrumentos que ele utiliza. Portanto, o bem-estar humano é condição sine qua non para o bem-estar da economia e da política. Entre esses e outros motivos desqualifica tanto o capitalismo quanto o comunismo, ambos fazem uma separação clara de ética e economia, elemento considerado inaceitável.
Na enciclica Caritas in Veritate, publicada no pós-crise 2008 (em Julho de 2009), abordou enfaticamente questões económicas, esclarecendo que não cabe à Igreja oferecer soluções técnicas para os problemas económicos, mas que a Igreja pode apontar prioridades e valores. Mencionou vários pontos pertinentes à doutrina social da Igreja, tais como a fome, ecologia, problemas relacionados com as migrações, bioética e demografia. As “janelas do Vaticano” devem tê-lo ajudado a perceber a crise económica em que a Europa estava mergulhada e que comprometia a fé.
O Papa Francisco, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, acaba por ir mais longe ao abordar a necessidade da economia contribuir para a dignidade da pessoa humana, apelando a valores como a solidariedade, a doação, a equidade, a liberdade, a fraternidade e o amor ao próximo. Faz uma análise contemporânea, afirmando que o capitalismo, deixado à sua sorte, sem autorreferencial, é um sistema que se move em função dos seus próprios propósitos e que exclui muitos. Quando o Papa Francisco fala do amor pelo dinheiro, revela que essa é, por excelência, a forma de existência do capitalismo “selvagem”, que expurga os valores acima referidos. Valores que foram sendo dissolvidos pelo espírito competitivo dos mercados e pela consequente valorização excessiva do dinheiro e do consumismo. Alerta então para a necessidade de atender aos marginalizados, para quem viver é sobreviver, e mostrar a parte da realidade que tende a esconder-se à nossa consciência. Mostrar que mesmo quando a economia vai bem muitos vão mal.
“A necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter resultados e ordenar a sociedade, mas (...) para a curar (...)”, porque “(...) enquanto não forem (...) solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais (..). Assim como o mandamento ‘não matar’ assegura o valor da vida humana, também hoje devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade social’. Esta economia mata”, desejando com isso afirmar “não” ao dinheiro que governa, em vez de servir. Efetivamente, antes de existir o dinheiro, já existia a vida, já existiam necessidades sociais, já existiam seres humanos.
Não se trata, pois, de erradicar o capitalismo, ou de rejeitar o dinheiro ou o lucro, trata-se de obter dinheiro e lucro com ética e de retirar a exploração do centro do lucro. Efetivamente, “a dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política económica”, mas, em vez disso, assistiu-se à libertação dos mercados das peias reguladoras e disciplinadoras do Estado, e a sociedade humana transformou-se numa “sociedade de mercado”: o mercado que devia existir para ajudar o homem a viver uma vida melhor, passou a ordenar, a dominar, a vida humana. Há que “não (...) confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado”, sendo que infelizmente “hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. (...) O ser humano é considerado (...) como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. (...) Uma das causas desta situação está na relação (...) com o dinheiro, porque aceitamos (...) o seu domínio (...). A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano.” A crise financeira é, pois, o produto da desregulação, mas também e, sobretudo, da subtração do homem do centro da atividade económica.
E, num desejável novo contexto, aos governos deve exigir-se uma intervenção conjunta, dado que, com a globalização, os atos económicos se difundem no mundo inteiro. Por isso “(...) nenhum governo pode agir à margem de uma responsabilidade comum”, porque “se realmente queremos alcançar uma economia global saudável, precisamos (...) de um modo mais eficiente de interacção que (...) assegure o bem-estar económico a todos os países (...).”