Mário Tavares da Silva, Visão online

 O Homem do século XXI é, decididamente, um Homo Digitalis na sua forma de viver, comunicar e de se relacionar, agrilhoado que se encontra em rede com os seus semelhantes..

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A «revolução digital» veio para ficar e todos somos, sem exceção, convocados para o desafio. O Homem, como já outras vezes sucedeu na história da Humanidade, é chamado a reinventar-se, de tal forma que se é verdade que a «linguagem» de que nos fala Yuval Noah Harari na sua notável “História Breve da Humanidade” constituiu, outrora, um recurso único e excecional que permitiu ao Homo Sapiens conquistar o mundo, ela apresenta-se, doravante, cifrada, encriptada em complexos algoritmos que, em frações de nanossegundos, percorrem milhões de dados escondidos em invisíveis nuvens digitais, perdidos num imenso céu único e global em que todos almejam marcar presença. O Homem do século XXI é, decididamente, um Homo Digitalis na sua forma de viver, comunicar e de se relacionar, agrilhoado que se encontra em rede com os seus semelhantes. Lembremo-nos que este novo tempo que vertiginosamente se desvela perante o nosso olhar, traz consigo realidades como a que se traduz pela cobertura telefónica global, as aplicações móveis de elevada sofisticação e, ainda, pelo aparecimento de extensíssimas plataformas comunicacionais de alta frequência aliadas a poderosos bancos de dados, «seiva digital» vivificante de um crescente mundo novo dirigido sabiamente pela eficaz batuta da inteligência artificial. A compreensão desta nova explosão de dados e do seu respetivo uso e tratamento exige, a um tempo, que os modernos decisores repensem os próprios fluxos comunicacionais em que as relações humanas tradicionalmente assentavam, uma vez que no quadro da globalização, o papel principal cabe agora às empresas de tecnologias de informação e comunicação (TIC), detentoras que se encontram do principal «material genético» desta pungente e avassaladora realidade digital. É isso, aliás, que em boa medida nos permite perceber melhor porque razão a «AIRBNB» conseguiu entrar com relativa facilidade no setor hoteleiro mundial, que a «UBER» e a «LYFT» meçam forças com o setor do táxi, que os gigantes «APPLE» e «GOOGLE» compitam ferozmente com os tradicionais fabricantes de automóveis ou, porque não, que a «BITCOIN» ou a «KICKSTARTER» tenham irrompido, desassombradamente, na tradicional arena do setor financeiro. Na verdade, esta nova economia digital que nos invade através do «BIG DATA» é, em primeira linha, uma economia de conhecimento, dominada por elementos imateriais e criptográficos que circulam diluídos em volumosos e insondáveis fluxos de informação. Não obstante este admirável e infindável «oceano digital», o comércio eletrónico e os novos produtos e serviços digitais imateriais que nele emergem, encerram em si, simultaneamente, inquietantes fontes de preocupação que nos impelem a uma permanente reflexão.

Com este propósito, duas iniciativas nos merecem destaque.

Uma primeira, mais circunscrita no seu âmbito material, é a que se corporiza na oportuna e arrojada «Lei para uma República Digital» («Loi pour une République numérique»), publicada em França a 8 de outubro de 2016 (L. n.º 2016-1321) e que, desde então, tem suscitado acesos e interessantes debates sobre o acesso ilimitado e gratuito a dados relativos à totalidade e integralidade das decisões tomadas pelas instâncias jurisdicionais francesas. Este alargamento digital do acesso no quadro da modernização da justiça francesa no século XXI, constitui um vetor suplementar de transformação do serviço público de justiça, refletindo uma imagem mais aberta e mais acessível da justiça, uma melhor previsibilidade construída a partir das decisões tomadas e, a final, a possibilidade de desenvolver novos métodos de trabalho no contexto de um controlo democrático mais forte e regenerado. No entanto, e como qualquer outra reforma, implica importantes reflexões por parte dos decisores públicos e uma desejável participação da sociedade em geral. Deste modo, e apenas para deixar algumas pistas, como se compatibilizará esse alargamento no acesso aos dados com a proteção de dados pessoais? Garantir-se-á a anonimização de dados pessoais dos diversos profissionais envolvidos no litígio (partes, magistrados e advogados)? Em caso afirmativo, quais os critérios determinativos para essa anonimização? E a anonimização de testemunhas deverá ser salvaguardada? Com que critérios? Por outro lado, como compatibilizar o acesso aos dados com as necessidades específicas que o mercado possa vir a revelar? Haverá, em perspetiva, algum risco de mercantilização dos dados acedidos em função de interesses específicos que não estritamente jurídicos? E como encarar esse risco de mercantilização dos dados com a necessária gratuitidade que se pretende assegurar a todos no respetivo acesso? E teremos todos nós, enquanto partes num processo judicial, um direito ao esquecimento? Como salvaguardar esse direito com o direito à informação que assiste ao público em geral no quadro do «open data»? Até que ponto valerá então a pena sacrificar a proteção da intimidade da vida privada de todos e de cada um de nós em nome do princípio da transparência?

Uma segunda iniciativa que se assume bem mais ambiciosa nos seus objetivos e, nessa medida, bem mais importante para a compreensão dos desafios que a «revolução digital» encerra, é a que resulta do relatório (Digital Economy Outlook 2017) relativo às perspetivas da OCDE para a Economia Digital no ano que recentemente findou. Trata-se de um documento da maior importância estratégica para os Estados em matéria de políticas publicas na área do digital e das novas TIC. Neste âmbito destacaria apenas três das múltiplas preocupações que o relatório evidencia e para as quais os decisores públicos e a sociedade em geral devem orientar, num futuro que se deseja próximo, a sua atenção. Em primeiro lugar, é por demais imperioso garantir a segurança de todos, em particular no que respeita aos riscos de privacidade, dado que estes, na ausência de um adequado controlo de minimização, tenderão a aumentar as preocupações dos consumidores com as situações de fraude eletrónica e com os mecanismos de reparação e de qualidade dos produtos online, o que, por si só, terá reflexos imediatos na confiança dos consumidores e no próprio nível de atividade económica do e-commerce. Em segundo lugar, é inquestionável o crescente protagonismo que a inteligência artificial tem vindo a assumir na assunção de tarefas de natureza cognitiva, até aqui um feudo exclusivo da espécie humana. Operando com elevados volumes de dados e fortemente preparados para uma aprendizagem automática e continuamente crítica, os algoritmos permitem identificar, isolar e trabalhar padrões de crescente complexidade, o que pode, certamente, conduzir a importantes questionamentos no domínio ético, mormente nos planos da transparência e da responsabilidade dos diversos stakeholders envolvidos. Um terceiro e último aspeto prende-se com o registo contabilístico da totalidade das transações em criptomoeda (blockchain), com dispensa de intervenção de qualquer entidade de confiança, de que se destaca, como mais ilustrativo exemplo, a «BITCOIN», moeda digital criada e enfeudada num mundo que virtualmente é apenas o seu, subtraída que está a quaisquer controlos ou monitorizações de bancos centrais ou de outras instituições financeiras.

Se é verdade que a «revolução digital» encerra em si mesma o gérmen de um novo mundo, também se impõe, na sua exata medida e proporção, a adoção, pelos diferentes decisores públicos, de competências, disciplinas, métodos e leis necessárias para que todos, sem exceção, possam beneficiar, na sua plenitude e em condições de adequada segurança, da multitude de oportunidades potenciadas por essa complexa, intrigante e imensa «galáxia digital».