Pedro Moura, Jornal i online
Em vez de oferecerem a alguém um presente como compensação pela vossa ausência, experimentem não oferecer nada e irem ter com essa pessoa, passar um bocado com ela, falar, rir, chorar.
Está a chegar o Natal. Ou melhor, parece que o Natal já chegou no início de Novembro. A azáfama dos anúncios, das compras, das luzes de Natal, das dores de cabeça sobre onde passar o Natal e com quem, da ansiedade generalizada com esta época que supostamente se pretendia de paz entre os homens em geral e para cada um em particular.
Muita tinta e verbo se gastou e gasta sobre a corrupção do espírito natalício, transformado cada vez mais numa época que se tornou símbolo e apanágio de consumismo, despesismo e alienação. Mas parecem ser palavras em saco roto, pois embora muita gente abane a cabeça num veemente ‘é verdade, o Natal é uma parvoíce’, essa mesma muita gente logo de seguida entra em modo ‘Natal’ no mesmo tempo que demora o Facebook a ‘abrir’.
Que prenda dar a quem, a quem dar prenda, a pessoa a quem não apetece presentear mas que ’tem de ser’, a avaliação angustiante de quanto se deve gastar em cada prenda para satisfazer o binómio ‘orçamento disponível’ vs ‘não passar vergonha com aquela pessoa’, a quantidade de coisas inúteis que são compradas e ofertadas, enfim, um chorrilho de parvoíce coletiva. E tudo isto mascarado de preocupação, de suposta genuína atenção e ligação para com o outro, o que receberá a oferenda e deverá ficar eternamente agradecido e reverente à nossa bondosa e magnânime pessoa.
Economicamente, ridículo. Socialmente, alienador. Culturalmente, atroz. Pessoalmente, estúpido.
É um jogo alimentado por doses diluvianas de publicidade e condicionamento comportamental à escala mundial. O que importa é que cada um jogue de forma completamente separada do outro, para evitar que ambos se apercebam da parvoíce auto-fágica em que se encontram, e para que ambos continuem tão (ou mais) separados depois de passada tão festiva época.
Um desperdício de tempo, dinheiro, recursos, sentimentos e oportunidades. Uma BlackFriday pintalgada com flocos brancos de neve artificial que dura dois (ou mais) meses, muitas vezes com sequelas traumáticas.
Mas esta é a visão negra, realista em muitos dos casos. Não é assim para todos. Sobretudo, não tem de ser assim.
O Natal não tem para mim um significado religioso (não o sou). O Natal não tem para mim um significado festivo (qualquer momento é bom para festa). O Natal é, para mim, uma época que gosto de usar como ponto de paragem, reflexão e ação sobre coisas que, infelizmente, por vezes são esquecidas ou roubadas na voragem dos dias.
Em primeiro lugar, a renúncia à solidão, a minha e a dos outros. A pressa, as necessidades, os desejos, os compromissos constantes levam-nos para um lugar escuro e sozinho. Há que não esquecer quem nos importa, há que não negligenciar quem podemos ajudar, há que esquecer o egoísmo necessário aos papéis velozes que desempenhamos no dia após dia e re-conceber a nossa vida como algo que só faz sentido na presença da luz dos outros.
Sugestão: em vez de oferecerem a alguém um presente como compensação pela vossa ausência, experimentem não oferecer nada e irem ter com essa pessoa, passar um bocado com ela, falar, rir, chorar.
Em segundo lugar a recalibragem de valores. Ensino sempre às minhas crianças que quando tudo é importante, nada é importante. A sapiência do saber viver necessita de se conseguir distinguir o que é importante do que é urgente, o que é fundamental do que é acessório, de acordo com o juízo de cada um. No mundo em que vivemos, com o bombardeamento contínuo de informação e solicitações, cada uma delas a clamar pela sua relevância superior em relação a tudo o resto, é natural que o espírito crítico se veja ameaçado e a capacidade de prioritização entre as várias vertentes da existência diminuída. Há que recuar um pouco de nós mesmos e olhar para a nossa vida e para o todo em que ela se banha com olhos de ver.
Sugestão: se tiverem alguém, um amigo, um familiar, que (ainda) tem um lugar no vosso coração, mas em relação à qual se tenham afastado pelo normal percurso da vida, por alguma agrura que possam ter surgido no caminho ou por qualquer outra razão da qual já nem se recordem, procurem-na, abracem-na, digam-lhe que ainda é importante na vossa vida. É natural sentirem-se inseguros em relação a isto, ou sentirem vergonha. Isso são tretas quando comparadas com o que a outra pessoa significa para vocês.
Em terceiro lugar a afirmação da vida, da verdadeira vida, não da vida fingida ou projetada. Num mundo em que as pessoas passaram por ser consumidores para serem hoje sobretudo elas mesmas o produto, em que quanto mais canais e possibilidades de comunicação existe mais alheamento, anonimização e alienação existe, em que cada vez mais as pessoas mais não são que o seu avatar nas redes sociais (geralmente um ‘eu’ perfecionado) ou um data point num algoritmo informático que decide que anúncio ou informação podemos ver nos centos de sites onde passamos a vida, é necessário reequilibrar a equação. Os meios são hoje os fins, e impera não um retorno a um qualquer passado dourado (como muitos pretensamente querem) mas uma evolução para um futuro onde as pessoas sejam cada vez mais (e não menos) pessoas, com toda a maravilhosa gama de qualidades e defeitos que nos caracterizam.
Sugestão: experimentem algo muito simples: no dia de Natal desliguem e escondam telemóveis, computadores, televisões e consolas de jogos. Falem com as pessoas, resistam ao envio de SMSs de Natal e Boas Festas, ultrapassem o tédio de terem de aturar as pessoas que vos rodeiam sem poderem ir ao Face ou ao Insta, sejam corajosos em relação a essas sereias tecnológicas que nos raptam mais e mais dia após dia, experimentem olhar os vossos amigos e famílias nos olhos. Vão ter com alguém mais velho e perguntem-lhe algo, sobre o seu passado, o que pensa sobre um qualquer assunto, escutem-no antes que morra. Brinquem com as crianças antes que vocês morram. Ousem conhecer e dar-se a conhecer como pessoas (sem hashtags).
É o que me apraz escrever. Bom Natal, melhor vida.