António João Maia, Jornal i online

Na realidade e bem vistas as coisas “os outros” não existem. Esses “outros” são afinal de contas todos e cada um de nós!

9 de Dezembro é o dia internacional contra a corrupção. Foi neste dia que, em 2003, uma grande parte dos países das Nações Unidas subscreveu a Convenção da ONU contra a corrupção , por reconhecerem tratar-se de um problema transversal, que está presente em todas as sociedades, e cuja resolução mais eficaz depende da existência de instrumentos de cooperação internacional.

Em Portugal, como todos temos testemunhado, o problema da corrupção é-nos apresentado todos os dias sobretudo através da comunicação social. E é fundamentalmente por todo o “ruído” mediático que se tem feito em torno dele que os portugueses revelam uma perceção dramática sobre o que seja a corrupção no seu país – nos últimos anos, não tem havido praticamente dia nenhum em que o termo “corrupção” não tenha estado presente na primeira página de um qualquer jornal ou na abertura de um telejornal.

Os estudos que têm sido realizados, sobretudo pela Transparência Internacional, relativamente à forma como o problema é percecionado pela generalidade dos portugueses têm revelado que essa perceção se alicerça fundamentalmente em torno de quatro ideias: (i) a corrupção está generalizada na sociedade, muito particularmente na classe política; (ii) a corrupção é um problema dos outros – quando se pergunta às pessoas se participaram em práticas de corrupção, muito poucas assumem essa situação; (iii) a justiça é incapaz de punir estas práticas – um claro, e sempre perverso, sentimento de impunidade; (iv) o problema vai aumentar no futuro.

A perceção assim traçada, sobretudo as duas primeiras componente, coloca o problema numa perspetiva dual. Entre o “eu” e os “outros”. Se por um lado, em termos absolutos, os portugueses não têm dúvida de que tudo e todos são corruptos, por outro, ao assumirem não terem estado diretamente envolvidos em práticas desta natureza, revelam não o conhecer no plano concreto. Por outras palavras, a corrupção será uma realidade que todos reconhecem existir, embora poucos a conheçam por experiência direta.

E esta dimensão relacional acaba por estar presente no quotidiano das pessoas e por relativizar o modo como avaliam as ações que as rodeiam e como se posicionam perante o próprio problema.

Vejamos, a título de exemplo, esta situação: todos nós já assistimos, por certo, a relatos de situações de alguém que prescindiu da emissão da fatura relativa à reparação do automóvel ou à realização de obras em casa de modo a evitar o pagamento dos impostos associados. Se a situação descrita tiver sido praticada por um desconhecido, provavelmente vai ser avaliada com um grau de censurabilidade mais forte – “isto é inadmissível”; “assim o país não vai para frente, não saímos da cepa torta”; “o imposto que aquele não pagou vai ter de ser suportado por todos, incluindo por mim”. Todavia se a mesmíssima situação é assumida por um familiar ou amigo chegado, a reação tende a relativizar-se – “toda a gente faz isso”; “muitos fazem bem pior”; “já nos levam muito no final do mês”; “isto é para eles – referindo-se à classe política – se sustentarem e o povo fica sempre na miséria”; “se vamos a pagar os impostos todos, o que nos vai sobrar para viver?”.

Esta dicotomia acaba por ser uma forma de relativizar a questão, de autodesresponsabilização de cada um face a um problema que, não podemos esquecer, é de todos. A corrupção é um problema que afeta toda a sociedade, quer pelos custos económicos que provoca, quer sobretudo pelos efeitos de corrosão dos índices de confiança social sobre as instituições e sobre as próprias pessoas, umas relativamente às outras.

Mas esta dicotomia entre “uns” e “os outros” apresenta outro efeito porventura ainda mais perverso, que é o de afastar inconscientemente as pessoas do envolvimento no esforço de controlo efetivo do problema. Quando as pessoas comodamente assumem que o problema é dos outros, isso significa que elas próprias estão corretas. Que têm de ser os outros a esforçar-se para mudar as suas atitudes e as suas práticas. Que têm de ser os outros a dar esses passos, a fazer esse esforço, porque afinal são eles que estão mal.

Esta dicotomia deixa-nos assim a todos, ao mesmo tempo, no conforto do lado dos “uns”, do lado dos que estão corretos, dos que nada têm de fazer para alterar o rumo da questão, porque afinal, bem vistas as coisas, o problema é dos “outros”. É para “os outros” e para as suas práticas inadequadas que se atiram as culpas do estado em que nos encontramos.

Mas na realidade e bem vistas as coisas “os outros” não existem. Esses “outros” são afinal de contas todos e cada um de nós!

Este modo de ser e de estar, esta atitude, que é inconsciente, como se disse, acaba por ser uma espécie de armadilha que nos mantém todos “amarrados” a uma atitude tranquilamente passiva. E em si mesma, esta passividade é perversa. Ela afasta-nos de contribuirmos ativamente para as dinâmicas da resolução do problema em si mesmo.

A corrupção é um problema que tem uma existência concreta em Portugal, como tem em todos os países do mundo, não tenhamos dúvidas. E a atitude de envolvimento das pessoas, dos cidadãos, é reconhecidamente um fator de importância determinante na concretização das medidas de controlo sobre o problema. Mais do que as instituições de controlo, cuja ação é sem dúvida importante, tem de ser cada pessoa, cada cidadão, o primeiro a dizer: “Não, não aceito nem compactuo com a fraude e a corrupção!”; “Não, não sou indiferente ao que se passa à minha volta e por isso denuncio as situações de que tenho conhecimento ou contribuo ativamente para o seu esclarecimento!”.

A luta relativamente à corrupção é uma questão de atitude, de cidadania, e depende do envolvimento de todos e de cada um de nós!