Óscar Afonso, Público

 

Como dá conta a dissertação de mestrado do Roberto Arnone, todos os anos, ao longo da primavera/verão, Portugal é um palco festivaleiro, com mais de 150 iniciativas – música, concertos, raves e representações diversas –, com impacto no turismo e na economia local. Os maiores envolvem verbas directas – bilheteiras, patrocínios privados e apoios institucionais – que ultrapassam os 100 milhões de euros.

Milhares de portugueses e turistas, com pouca convivência social de uns com os outros, não se importam de passar vários dias em campos enlameados por chuva ou empoeirados pelo efeito de um calor intenso, a ouvir a música preferida no meio de pessoas ébrias, sob o efeito de estupefacientes, com sistemas sanitários com más condições de salubridade e sem higiene, e com proximidade a um cocktail de crimes – confrontos físicos, assaltos, furtos, roubos, tentativas de violação, assédio sexual, prostituição, fugas ao fisco, branqueamento de capitais, infrações a normas económico-alimentares por falta de higiene e outros delitos. A música, as conversas e o bom ambiente escondem, pois, um lado apócrifo, arcano e viciante de modo que, no seu lado recôndito, a delinquência está presente.

Existe uma simbiose de géneros e estilos de música que se adaptam e adoptam em cada festival, que diferem nos distintos eventos que caracterizam determinados movimentos – house, mods, new age travellers, punk, rastafáris, rock&roll, seapunks, skinheads e techno – e que remetem para distintos crimes. Podemos considerar que o álcool e as drogas formam uma simbiose de consumo e tendem a ser frequentes em todos, alcançando, em alguns casos, proporções inquietantes. Aparentemente a venda chega a publicitar-se em manuscritos em papel sujo e amarrotado tipo “promoção LSD 25 gramas, 200 euros”, sem preocupação com a segurança. Os criminosos, presentes nos recintos ou nos parques de campismo dos eventos, parecem não encontrar dificuldades, introduzindo “produtos ilícitos” nos espaços físicos algum tempo antes da sua ocorrência. Com uma fiscalização aparentemente tão má, encontram, pois, muita liberdade para actos proibidos.

As vítimas, geralmente sob o efeito de álcool e drogas, são muito vulneráveis, sendo fácil de, por exemplo, furtar, roubar e até violar. Entre furtos e roubos destacam-se valores monetários, objectos de valor, carteiras com documentos, telemóveis, bebidas, bilhetes e chaves de automóveis. Os festivaleiros são também vítimas de new travellers, que, sem habitação fixa e em constante viagem, são difíceis de identificar. Vivem ilegais e vendem produtos baratos em barracas improvisadas, sem factura/recibo e, assim, livres de impostos.

Nos bares dos recintos, geralmente pertencem aos promotores, as vendas tendem também a ser não registadas, já que acaba por se instalar/patrocinar a desordem nas trocas. Acresce que nos bares para Very Important Person (VIP) o consumo oferecido permite a camuflagem de uma quantia significativa de aquisições.

O número de espectadores é também uma questão delicada. Na relação com patrocinadores e instituições locais, o trunfo de argumentação de promotores para negociar valores depende da respectiva grandeza, que chega a ser multiplicado por quatro, embora geralmente se contem pernas em vez das cabeças! Na relação com a autoridade tributária, interessa, aos promotores, apresentar o menor número possível, de modo a justificar menores receitas, pelo que o número tende a ser dividido. Para “enganar” a autoridade tributária a estampagem dos bilhetes é muitas vezes impressa em séries sequenciais, que podem ser duplicadas (ou triplicadas), pelo que o número é dividido por dois (ou três). Como o público tende a não solicitar factura e a pagar em numerário, a fuga ao fisco fica assegurada.

O recrutamento de pessoal para as diferentes tarefas, incluindo de segurança, comporta até elementos das forças e serviços de segurança pública. Recorrendo às designações “voluntário” ou “apoio ao cliente” e sendo pago em dinheiro, o trabalho tende a ser não declarado. Deste modo obtém-se (a má) segurança privada barata e ilegal. Falando em recrutamento, não podemos ignorar que a assinatura dos contratos da maioria das bandas estrangeiras ocorre fora do país.

As estatísticas oficiais revelam que, ao longo da última década, a quantidade e diversidade de festivais tem aumentado. Mas existem ainda os festivais isolados, clandestinos, com um tipo de música muito própria. Um recinto improvisado, no meio de um monte, negociado com os proprietários dos terrenos por um valor pago em notas e moedas, e sempre sem factura. Com uma tenda instalada à socapa, sem licença de ruído, nem licença camarária, nem tão pouco a declaração do evento na Inspecção Geral das Actividades Culturais (IGAC). Mas, existem bares e barracas onde abundam produtos alimentares e álcool vendidos sem condições de higiene e sem factura, e há droga. Não existem sanitários e o meio ambiente não é respeitado. O lixo permanece no local, o gerador de produção de energia e as aparelhagens usadas são alugadas, dispensadas ou furtadas. Os DJ´s não são portadores de licença de autorização da IGAC e a música é previamente extraída da net sem a anuência de Sociedade Portuguesa de Autores.

No contexto descrito, não admira que a comunicação social dê conta do aumento da criminalidade no período festivaleiro, apesar de, aparentemente e para não “sujar” o nome dos eventos, haja muitas ocorrências omitidas. Em suma, a criminalidade nos festivais tem aumentado, pelo que, para evitar (mais) uma desgraça nacional, há que desenvolver um trabalho conjunto, responsável e sério, entre as autoridades e os agentes privados envolvidos, de modo a erradicar ou diminuir significativamente o (risco de) crime.

Óscar Afonso – Presidente do OBEGEF – Observatório de Economia e Gestão de Fraude