Ricardo Rodrigues, Visão online,

Mergulhadas na rede, em autoria cega, somos presas ansiosas pelo resgate

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Uma insaciável fome de esperanças múltiplas tem assombrado profundamente o consciente humano. Na penumbra de uma sólida ignorância um etéreo tranquilizante vem paulatinamente tingindo as pobres almas suscetíveis e energizando os corações mais sensíveis.

Vivemos tempos de ultra mundanização da matriz e dos eixos (Poder-Riqueza-Misericórdia), tempos dos universalismos patológicos, tempos de desnorte e descontexto consciencial, tempos de excessos, tempos de exterioridade, de instantaneidade e imediatismo, tempos de hipersensibilidade,  tempos de solidão, tempos de coisa nenhuma. Uma predisposição ótima à crença no fantástico, à compra de soluções fast track e de copiosas sensações e por meras “sugestões” e à aquisição de ilusões para necessidades inexistentes, fúteis ou argutamente redimensionadas.

Diversos são os nomes e slogans que classificam os produtos ou serviços propostos ao consumidor, e numerosos, também, os tipos de ações ou omissões propagandistas que, sem freio, vão condicionando a vontade, sobretudo, dos vulneráveis do corpo, da mente e do espírito (os “cegos” e os imobilizados ou “entre a espada e a parede”).

Destacamos as afamadas “ofertas exclusivas”, os “produtos ou serviços milagre” (em especial das “curas” físicas, psíquicas e espirituais), os “empregos de sonho”, sobretudo, quando lubrificados e amplificados pelo impulso multifacetado das novas tecnologias da comunicação e da informação (v.g.: spams, leilões online, assédio a modems, et al.).

Confundimos hoje o génio da liberdade criativa (sem limites) e mercantil, com os limites à indução, por via do leonino proveito comercial do místico e do mítico (em geral, do paranormal), numa conjugação perniciosa com as fragilidades da individualidade.

Se, por um lado, a evidência carece do bom método científico, os subjetivismos reais ou potenciais, apesar da boa verdade que os possa sustentar (em rigor se diga improvável), necessitam de um enquadramento ético-normativo mais exigente, que cumpra os mínimos de veracidade e respeito pelos demais direitos dos consumidores, em particular, a saúde e a segurança (cf. o Código da publicidade, a Lei da defesa do consumidor e o Decreto –Lei Sobre práticas comerciais desleais; a Lei sobre comunicações eletrónicas e os Decretos-Lei sobre o comércio eletrónico e as vendas à distância, A Lei sobre Criminalidade Informática, et al.).

 

Pois haverá algo mais sagrado que o mais íntimo fervor (individual) da crença humana? No fundo, o mais denso e profundo reduto das esperanças dos perdidos, dos oprimidos, dos mal amados, dos aflitos e dos desesperados.

Facto é que as necessidades são ilimitadas, pelo que, sempre terá no melhor íntimo da individualidade um ou mais vazios ou lacunas a preencher ou superar! Haverá, do mesmo modo, um dilema, um obstáculo, carecido daquela “moleta mágica” (externa) capaz de antecipar e/ou solucionar todos os problemas!

Aquele instrumento-mecanismo raro, incomum, com força e poder ocultos, a arma infalível contra um mal-bem, o único meio ajustado a certas e determinadas representações de vida e do mundo.

Surge assim, como resposta aos seus anseios, mais um cogumelo mágico, uma infusão divinal, uma mezinha oriental, um novo suplemento milagroso, uma pedra curativa, um amuleto milenar, um novo curandeiro, um médium “especialista”, um pai de santo, um bruxo, um feiticeiro, um padre diferente dos restantes!

Produtos e serviços exclusivos, limitados, muito seguros, e com resultados extraordinários. Porque o mundo místico e mítico não apresenta quaisquer reservas, e as divindades não conhecem os limites da existência e das nossas dimensões.

E, de um modo ou de outro, todos nós, criadores e destinatários do marketing do “simpático”, nós os leitores mais ansiosos, os consumidores mais ávidos, o crentes mais devotos, os autores mais cegos, mergulham despidos na “banha da cobra”.

Se há casos em que a fraude é, de certo modo, facilmente identificável, pelo claro incumprimento dos preceitos normativos (ex maxime, aplicações financeiras e demais investimentos fraudulentos, fraudes médicas e laborais, algumas fraudes com medicamentos – na ordem do dia), a fluidez de algumas realidades – sobretudo as de natureza paranormal -  esbatem a idoneidade do espírito do legislado, bem como, as capacidades institucionais e operacionais.

Senão vejamos:

Que verdade exigir, quando, na realidade, tudo se passa ao nível do extrassensorial? Que propaganda impedir se muito do (a)firmado não passa de crença socialmente aceite, aprendida e subjetivamente laborada, que poderá divergir substancialmente da crença do utente-cliente (consumidor)? Será eticamente censurável destacar a natureza milagrosa do produto ou serviço prestado, quando a improbabilidade (que não se confunde com impossibilidade) é a base relativa de toda a crença? Por outro lado, e apesar do nível de segurança de certos fármacos em mercado, alguns não revelam evidências científicas que comprovem de um modo lapidar a sua eficácia (ex.: prescrição de glucosamina para o desgaste das articulações), outros apresentam uma lista infindável de efeitos-secundários nocivos (ex.: antidepressivos) não deixando, naturalmente, de ser prescritos pelos profissionais de saúde habilitados.

Apesar de tudo a menção da falta de base científica revela-se imperiosa, facto que não retira o seu pertenço caracter místico ou mítico, nem impede o natural uso de personalidades veículo, desde que fidedignas (testemunhos reais), devidamente identificadas, como estratégias de convencimento. Nos casos onde tal indicação não se constatar a avaliação científica deverá ter lugar, com as correspondentes cominações-sanções jurídico-legais.

Entendemos, neste âmbito, proveitosa a intensificação da supervisão e do controlo institucionais (ex.: entidades reguladoras e demais entidades administrativas; entidades judiciárias) a fim de impedir ou, pelo menos, garantir a saúde, a segurança, bem como, mitigar o uso de informações falsas – sobre características, composição e entrega - com o intuito de induzir em erro. A par, o estabelecimento de intensas sinergias com a sociedade civil, nas mais diversas dimensões, em clara consonância com os princípios constitucionais da proximidade e da desburocratização.

Não obstante, apesar de tudo, urge laborar sobre o aspeto mais estruturante, o campo de ressonância dos fenómenos. Referimo-nos, pois, ao tecido social, em particular, a sua natureza, qualidade, densidade e textura. Falamos, assim, neste âmbito, da importância do crescimento sustentado da massa crítica, do estímulo à participação cívica ativa, da massificação do conhecimento informado por via do debate plural alargado e de natureza instrutiva- educativa.

Instrumentos sociais ao serviço da autonomia de um novo ser, com um renovado sentido de ser e de estar, veículos de emancipação.

Pois, no final das contas, onde poderemos nós encontrar as soluções ideais para as nossas crises (e demais problemas), senão, dentro de nós?! Um conhecido Chavão-Tempo, também ele, vendido a preço de ouro dos Deuses.

Mas, realmente, para que precisaremos nós de um tempo que não é o nosso, de um corpo que nunca será nosso, de uma vida de outrem, se nunca seremos, apenas estaremos?!

A nossa individualidade nas dimensões física, psíquica, espiritual estará, sempre, dependente das nossas atitudes e demais decisões, a curto, médio e longo prazo, e nos diversos planos de existência. O sentido ético-moral da vida exige, em ultima analise, um compromisso de responsabilização pelas ações e omissões. Não negamos, com isso, a importância da crença como fenómeno integrador do ser global, um fenómeno de cariz orientativo, até curativo e apaziguador.

Mas como atingir a paz, o nirvana, a realização pessoal e profissional, como obter a linha perfeita, ou, mesmo, corrigir uma imperfeição ou superar uma maleita sem mudanças efetivas nos hábitos de vida (gerais)?

Por outro lado, o que esperar de um produto ou serviço milagroso dito como solução efetiva universal para um problema ou para todos os problemas, senão a desilusão, o insucesso, o fracasso?

Apesar de tudo, este tipo de propagandas apresentam uma elevadíssima taxa de sucesso (quase milagrosa), sobretudo entre as populações mais débeis, menos instruídas e menos informadas.

Falamos, em muitos casos, de um estado de crença cego ou acrítico (equivalente a um cientismo ou ateimo absolutos), uma aparente letargia, terreno fértil ou foco catalisador da fraude!

Pois, o que esperar de um dado fenómeno comercial, senão o de lograr o mais eficiente lucro?

E o que esperar das estratégias de venda, senão meras densificações da velha máxima de “os fins justificam os meios” (cum grano salis)?

Entendemos, nesta linha, que de modo a equilibrar as relações de força, é, verdadeiramente, desejável, nos dias que correm, encontrar como caracteres de qualidade do perfil do utente-cliente (consumidor), entre outros, uma postura avisada e sapiente, e do mais elevado grau de exigência. Um perfil individual de quem procura, questiona e desvenda, que põe em causa, que reclama, que denuncia.

Urge, assim, transmutar o atual estado de consciência, assegurando uma eficiente transição das diversas representações, com o desiderato último de que o “simples sim” dê lugar a um “orgulhoso e informado não” face a propostas “mentirosas” que abusam das predisposições da individualidade.