José António Moreira, Público
Em 1953, Donald Cressey, no seu livro “Other People’s Money: A study in the Social Psychology of Embezzlement”, propôs o “triângulo da fraude” como abordagem explicativa deste tipo de comportamento antissocial. Assenta em três vetores.
O primeiro, a “pressão” sentida pelo defraudador, resultante de um problema grave que considera ser impossível de partilhar com terceiros sem que daí resultem graves consequências. Por exemplo, um revés num negócio e ou um prejuízo que não se quer dar a conhecer ao mercado. É traço comum à generalidade dos grandes escândalos financeiros conhecidos, e também está presente no BPN. Negócios que correram mal, prejuízos verificados, ocultação fraudulenta destes no Banco Insular.
O segundo vetor, a “oportunidade” de concretizar a fraude. Tem de haver condições para ultrapassar os controlos existentes. No caso em análise, auditores que não conseguiram ver para além do que constava dos números contabilísticos; o regulador, Banco de Portugal, a quem as movimentações de pessoas e operações em torno do banco não mereceram qualquer tipo de interrogação; os outros bancos do sistema que, necessariamente, a partir de movimentos financeiros, ou de fluxos de aplicações e de clientes de e para o BPN, se terão apercebido que algo não batia certo com esta instituição, mas mantiveram-se silenciosos; os próprios clientes que, embalados por taxas de juros muito superiores às da concorrência, se esqueceram de ter presente que quando algo parece bom de mais para ser verdade, é porque não é mesmo verdade. Individualmente e em conjunto, estes fatores contribuíram para a ocorrência e perpetuação da fraude.
Por último, a “justificação”. Evidência científica mostra que mesmo o mais empedernido dos defraudadores não convive bem com a assunção pessoal de que está a cometer um crime, de que está a ser desonesto. Em casos como o do BPN, a fraude tende a ser autojustificada, por quem a perpetra, como uma situação temporária, algo necessário até que lucros futuros permitam cobrir os prejuízos escondidos.
A fraude cometida no BPN, “a maior burla da história portuguesa”, nas palavras do presidente do coletivo de juízes, comunga, pois, dos traços principais dos grandes escândalos financeiros em que as duas últimas décadas foram férteis.
O que não é comum à generalidade desses processos são as consequências para os defraudadores. O acórdão do caso BPN, agora julgado, terá deixado ao comum dos cidadãos uma sensação de desilusão. Para uma fraude que se estimou ter atingido 9,7 mil milhões de euros (valores não registados na contabilidade), e que se estima ter implicado (ou vir a implicar) para o erário público responsabilidades de mais de 5 mil milhões, houve apenas quatro condenados com penas de prisão efetiva. Oito pessoas também envolvidas na fraude viram as suas penas suspensas contra o pagamento de uma indemnização pecuniária de algumas poucas dezenas de milhares de euros.
Faz sentido pensar nas justificações fornecidas pelos juízes para tais suspensões: “O que releva fundamentalmente é que nenhum deles [arguidos] teve qualquer capacidade de decisão e condução dos destinos do grupo SLN, do BPN, S.A. e no Banco Insular”. Pergunto: mas conheciam o que estava a acontecer, participando dos atos que consubstanciaram a fraude em conivência com quem “ia ao volante”? tinham perceção da ilegalidade dos factos, daí resultando obrigação, pelo menos moral, de denunciar a situação? Julgo que as respostas a ambas as interrogações são “sim”. Então, esta primeira justificação dos juízes é pobre, numa situação em que se propunham sinalizar a mão pesada da justiça em casos desta natureza.
Complementam com um segundo argumento. Assenta na censura legal (e intui-se, nas entrelinhas, também na social) como forma de punição. É referido que “...estamos em crer que a comunidade em geral ainda compreenderá que a suspensão das penas de prisão possa realizar as finalidades da prevenção geral … [sendo] de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão, neste caso, ainda realizarão de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Com todo o respeito pela decisão dos doutos juízes, na prática este tipo de censuras transforma-se em nada. Num tempo em que a sociedade não raras vezes inverte os valores, olhando o bandido como o herói, como o esperto que se “desenrasca”, tomar a mera censura escrita como punição de um comportamento antissocial da natureza do referido parece ser muito pouco, sobretudo quando olhada tal punição como desincentivo a futuros casos.
Se o coletivo de juízes tivesse justificado a suspensão de penas com o facto de os nove anos passados desde o início do processo até à leitura do acórdão de primeira instância serem punição suficiente para os arguidos, parecer-me-ia ser fundamentação mais aceitável do que as hipotéticas censuras legal e social referidas. Muito se tem falado da lentidão da aplicação da justiça. Neste processo do BPN, sete anos (!) foi o tempo que demorou o julgamento propriamente dito. E trata-se, ainda, do primeiro “round”. Seguir-se-ao os recursos para as instâncias superiores. Um dos réus condenados com pena efetiva de prisão respondeu a uma jornalista que o interpelou à saída do tribunal, onde acabara de ouvir a leitura da sentença condenatória: “Isto foi só o início. Temos agora pela frente nove anos de recursos.” Significa isto que, na melhor das hipóteses, mesmo perdendo todos os recursos, nunca antes de meados da próxima década irá cumprir a pena. Será isto justiça?
José António Moreira – Associado do OBEGEF – Observatório de Economia e Gestão de Fraude