José António Moreira, Público online,
1. “Estamos a um mês do final do ano. A manter-se a evolução das vendas e dos gastos, iremos terminá-lo com prejuízo”, disse o contabilista ao gestor da empresa. “Não podemos apresentar contas com prejuízo, caso contrário a banca, depois do fraco resultado do ano passado, cortar-nos-á o crédito ...”, replicou este último, com ar preocupado. “Bem … por agora é tudo. Peça ao diretor comercial para vir cá acima.” A conversa que teve com este último girou em torno das vendas, da pressão a exercer sobre os clientes através de reduções de preço e aumento do prazo de pagamento. No final do ano, o acréscimo de vendas necessário foi uma realidade, o resultado final foi positivo e os credores da empresa ficaram minimamente satisfeitos com a performance anual da empresa.
2. Esta situação hipotética, e a estratégia que propõe para resolver o problema de escassez de resultados, parece oferecer a solução que a todos torna felizes. Pura ilusão. Poderá funcionar no curto prazo, mas como a contabilidade não cria valor, o aumento dos resultados que se consegue é uma antecipação do que, em situação normal de atividade, seriam resultados do ano seguinte. Em linguagem muito coloquial, significa que para tapar o “buraco” existente no ano se criou um “buraco” no seguinte. Salvo se a atividade deste último decorrer de forma bastante favorável, esse “buraco” ficará então visível, com as consequências que se evitaram no primeiro momento. A isso acrescerão os custos que, entretanto, foi necessário suportar. Por exemplo, o pagamento de imposto sobre o rendimento, que sem a dita criatividade não seria devido; a redução da margem de lucro por via da diminuição do preço de venda; o custo financeiro com a dilação do prazo de recebimento das vendas. Efeitos que afetarão o presente, e de modo particular o futuro da empresa.
3.No domínio das contas públicas, em Portugal, desde há muito que estratégias com o mesmo propósito de mostrar resultados (défices) menos negativos são adotadas pelos sucessivos governos. Tempos houve em que isso era relativamente fácil de fazer, bastando esconder parte do défice nas contas de entidades públicas que não entravam para o cálculo do mesmo. Não foi por acaso que as empresas públicas acumularam nas suas contas ao longo dos anos dezenas de milhar de milhões de euros de prejuízos. Hoje isso não é possível. A partir da introdução do Sistema Europeu de Contas (SEC 2010), as administrações públicas e o setor público empresarial, de forma consolidada, contam para o cômputo desse défice. Constrangeu a criatividade contabilística, mas não a erradicou. Levou, apenas, a que se tivesse de ser mais engenhoso no desenho das ações de concretização dessa criatividade. Veja-se um caso muito recente, o Regime Facultativo de Reavaliação do Ativo.
4.Foi instituído pelo Decreto-Lei nº 66/2016, de 3 de novembro, que deu às empresas um prazo de pouco mais de um mês – até 15 de dezembro – para a ele aderirem. Pode parecer estranho um tão curto prazo, tendo em conta a necessidade daquelas efetuarem estudos que lhes permitissem aferir do interesse de tal regime; depois, para as que decidissem aderir, o poderem reunir os fundos que a adesão implicava pagar no imediato ao Estado. Só se pode explicar tal prazo pela pressão do fim do ano e a necessidade de atingir os limites do défice definidos. Em termos gerais, a reavaliação permite às empresas ajustar o respetivo balanço, por via de um aumento do valor líquido do Ativo, tendo como contrapartida a inscrição no respetivo Capital próprio de uma reserva de reavaliação do mesmo montante. Por mais explicações “altruístas” dadas pelo Governo no preâmbulo do referido diploma, baseadas no contributo da medida para a melhoria da estrutura financeira das empresas, o facto é que se trata, na essência, de uma engenhosa medida para antecipar receita fiscal. Pura criatividade contabilística. Com efeito, as empresas aderentes terão de pagar ao Estado 14% do valor da referida reserva, em três prestações anuais, a primeira das quais teve de ser liquidada em 2016 (a última coincide com o fim da legislatura). A contrapartida financeira para as empresas consiste na possibilidade de deduzirem ao imposto sobre o rendimento, a partir de 2019, ao ritmo das depreciações do Ativo, o valor da dita reserva, a uma taxa que se aproxima do dobro da cobrada pelo Estado e acima referida. Tendo este arrecadado em 2016 cerca de 104 milhões de euros, da primeira prestação, no total recolherá cerca de 312 milhões, que irão ter um custo futuro aproximado, por via das ditas deduções à coleta, de aproximadamente 620 milhões. Um “buraco” enorme a aparecer em futuros orçamentos, uma apetecida taxa de rendibilidade para as empresas com disponibilidades financeiras atuais. Custos e benefícios da criatividade contabilística.
5.Se ela é problemática nas empresas, sobretudo para quem lhes é externo e tem de se guiar pela informação contabilística para tomar decisões de crédito e de investimento, é-a por maioria de razão no domínio das contas públicas: pela opacidade que introduz na governação, impossibilitando um eficiente julgamento das forças que exercem o poder, mas também pela impossibilidade de responsabilização política. Dada a alternância no poder, esse tipo de criatividade, que tende a minar o exercício futuro da governação, acaba por “explodir” debaixo de quem governa na altura, não de quem “armadilhou o terreno”. Pode-se argumentar que como todos os governos fazem o mesmo, em média cada partido ou aliança partidária recolhe o que semeou. É triste consolação para os cidadãos em geral, para os contribuintes em particular, que são sempre quem paga a fatura, independentemente da altura em que ela chega.
6.Porém, não será este um custo que eles têm de suportar pela pressão que, com o seu próprio comportamento, exercem sobre os políticos? Sim. Em quem votam os cidadãos? Em quem lhes oferece facilidades, um mundo sem dificuldades, mesmo quando os tempos são tempestuosos. Como conseguem os políticos ir ao encontro das expetativas que criam? Com esforço, claro, mas também com muita criatividade contabilística. Sabendo que serão penalizados se não agradarem aos cidadãos, têm um forte incentivo para ajustarem os números contabilísticos, independentemente do modo e respetivo custo, para evitarem tal sanção. Se a esta pressão se juntar a que vem da Comissão Europeia, dos demais organismos de controlo e dos credores que zelam pelo dinheiro com que financiam o país, tem-se uma ideia aproximada das pressões onde germina a criatividade nas contas públicas. Como tais pressões não desaparecerão no futuro próximo, tão pouco ela desaparecerá. Aliás, a criatividade contabilística funciona como uma espécie de bola de neve. Depois de iniciada, ganha dinâmica própria, tendendo a avolumar-se a cada período. Como, em geral, implica antecipar receitas ou rendimentos de períodos seguintes, torna difícil gerir estes últimos sem voltar a fazer o mesmo.