José António Moreira, Público online,

 

1. Fraudes nos estágios patrocinados pelo IEFP – Instituto de Emprego e de Formação Profissional mereceram recentemente destaque nos órgãos de comunicação social. Em traços gerais, elas tinham subjacente um padrão que passava pela espoliação dos formandos, pelos respetivos patronos, de parte ou da totalidade do subsídio de formação que lhes era atribuído e, mesmo, nalguns casos, da exigência de pagamento das contribuições sociais que legalmente eram da responsabilidade desses patronos.

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Segundo alguns desses órgãos (e.g. Jornal de Notícias), desde 2014 que o IEFP tinha conhecimento da existência de tais fraudes, a partir de queixas recebidas de formandos. Porém, os respetivos responsáveis, escudados no facto de os queixosos não apresentarem meios concretos de prova da fraude, deixaram a situação evoluir, sem que fossem tomadas medidas destinadas a limitar os danos e evitar a repetição de tais situações.

A comunicação social pegou no assunto. A impossibilidade de atuar desapareceu. Sob pressão, o IEFP prometeu, desde logo, efetuar um inquérito interno ao funcionamento dos serviços, para apurar se estes têm atuado em conformidade, o que não parece ter sido o caso, pois, do que para já se sabe, não existia controlo das condições em que decorriam os estágios.

2. No Brasil, Dilma Rousseff foi destituída do cargo de presidente pelo Senado. O caminho que o processo percorreu até esse desfecho foi longo, caraterizando-se por intermináveis sessões onde deputados e senadores, muitos com percursos políticos muito pouco transparentes, petrificaram em posições pessoais que argumento algum conseguiria alterar. Ela foi acusada de “pedalada fiscal”, uma expressão cunhada com o tão saboroso humor brasileiro para designar a “manipulação das contas públicas”. Concretamente, para mostrar um défice orçamental menor e poder desse modo influenciar favoravelmente a perceção da opinião pública e dos agentes económicos sobre o desempenho financeiro do governo, este atrasava as transferências orçamentais para pagamento das despesas de funcionamento e das pensões de reforma, obtendo o efeito pretendido no défice; porém, os bancos públicos, que deviam receber essas transferências previamente à liquidação de tais encargos, pagavam estes atempadamente, o que na prática correspondia à existência de um financiamento encapotado desses bancos ao governo brasileiro, o que é proibido por lei (a Lei de Responsabilidade Fiscal proíbe uma instituição financeira pública de financiar a sua tutela, o Tesouro Nacional).

O jornal Estado de S. Paulo colocou a “boca no trombone”, a partir da investigação a que procedeu, trazendo à luz do dia a fraude do governo por via da “manipulação contabilística” das contas públicas. Isso despoletou intervenções do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União. A relação das forças políticas representadas no Parlamento e no Senado fez o resto. O resultado, e ponto da situação, é o que se conhece.

3. Dois casos distintos, na sua essência e contexto geográfico, com um denominador comum: a atuação da comunicação social. Esta é tradicionalmente considerada como o “quarto poder”, no sentido de que consegue ombrear em termos de influência social com os tradicionais poderes das sociedades democráticas (legislativo, executivo e judicial). Por via da investigação, análise e denúncia de situações ilegais, esse quarto poder atua como um contrapoder face aos restantes três, desempenhando um papel de alerta social para eventuais abusos da parte destes. Não é por acaso que em regimes ditatoriais – e Portugal tem uma experiência concreta no domínio – uma das primeiras medidas de atuação adotadas é a supressão da liberdade de imprensa, acabando com esse contrapoder, condição primeira para a sobrevivência de tais regimes.

4. Os dois casos referidos podem ser vistos como exemplos da influência desse quarto poder, que pela denúncia pública de situações como as referidas pressiona os responsáveis públicos à tomada de medidas para controlo ou erradicação das mesmas. Neste contexto, esse quarto poder aparece, pois, como um importante contributo no combate à fraude e corrupção, elementos disruptivos do funcionamento harmonioso da sociedade. Porém, as condicionantes que o afetam atualmente parecem apontar no sentido da sua perda de influência enquanto contrapoder. Olhe-se a evolução dos orçamentos da generalidade dos órgãos de comunicação. Têm vindo, desde há anos, a sofrer substanciais reduções, fruto das alterações no domínio das tecnologias da informação e da crise económica que lhes afetou e afeta as receitas de publicidade, daí resultando consequências negativas ao nível dos meios humanos e materiais disponíveis, afetando a disponibilidade de recursos para se embrenharem em trabalhos de investigação.

Pode argumentar-se que novas formas de divulgação da informação, por via da internet e das redes sociais, tenderão a compensar a referida evolução em perda do (tradicional) quarto poder a que atualmente se assiste. Pessoalmente, não me parece que venham a ser uma alternativa, sobretudo pela falta da componente de investigação e pela ausência de um mínimo de garantia de qualidade dos conteúdos divulgados.

5. O quarto poder está em transformação. Continua a existir, como se ilustrou, mas não se percebe muito bem onde nos irá levar a sua evolução em perda, que contornos e influência poderá ter como contrapoder no futuro. As consequências sociais da perda desta sua capacidade não deixarão de ser graves. Cada cidadão, a sociedade como um todo, ficará mais desprotegido face aos poderes instalados. Estaremos dispostos a pagar para poder continuar a usufruir dos benefícios inerentes a tal contrapoder? Por exemplo, através da afetação a um ou mais órgãos de comunicação social de uma pequena parte do IRS pago, a exemplo do que atualmente os contribuintes podem fazer relativamente às instituições de solidariedade social? Talvez estejamos. Porém, estarão os governos abertos a um tal tipo de solução?