Carlos Pimenta, OBEGEF

 

“O traumatismo é produzido pelo futuro que há-de vir, pela ameaça do pior que há-de vir, mais do que pela agressão que «já terminou»” (Derrida in Filosofia em tempo de terror)

1. O terror desceu às ruas de França. O medo apoderou-se dos europeus que interiorizaram a possibilidade de um novo atentado. A maior visibilidade das polícias e forças armadas não dissipam significativamente as dúvidas quanto a essa viabilidade. As prisões realizadas em pouco tempo deixam o sabor amargo da falta de capacidade de antecipação e a incerteza sobre a prevenção conseguida.

A ruptura com a vida quotidiana, o receio da probabilidade de acontecimentos futuros destabiliza os hábitos dos cidadãos. A agressão externa aumenta a confiança no Estado, tão degradada nas democracias americana e europeia, funcionando como uma âncora de salvaguarda. É confortante, mas pode acarretar dois perigos: o esquecimento dos antecedentes e o apoio a soluções musculadas: “a experiência da liberdade absoluta transformar-se-á num medo da liberdade profundamente enraizado” (Riemen).

2. Desde 11 de Setembro de 2001 o feitiço virou-se contra o feiticeiro. Vários acontecimentos confirmaram essa situação. A al-Qaeda constituiu-se nos anos 70 sob o lema de várias acções de guerra continuadas visando a constituição de um estado pan-islamista. A sua organização em células espalhadas por muitos países defende-a da repressão e semente influências.

A sua natureza terrorista era óbvia. Contudo, em vez de ser encarado como uma ameaça à segurança e à liberdade, foi muitas vezes encarada como um potencial aliado. Pelas armas e pela capacidade de ideologização das camadas mais jovens. Utilizada no Afeganistão como força de combate contra a União Soviética, reutilizada com financiamento e armamento ocidental na Bósnia Herzegovina, violando decisões da ONU, e no Kosovo, participou activamente na autoproclamada primavera árabe, ora directamente ora expandindo-se através de movimentos rebeldes alimentados em dinheiro e armas pelo países ocidentais, conjugando esforço com a NATO na Líbia. E durante o último lustro, com o apoio de vários países árabes e de democracias ocidentais as redes militantes islamitas ligadas à al-Qaeda ou por esta influenciadas geraram o «Estado Islâmico». A invasão unilateral do Iraque criou um ambiente favorável à sua constituição. A Turquia mantém uma ambiguidade estratégica e económica. Como afirma Nafeez Ahmed, politólogo britânico, a coligação conduzida pelos EUA contra o «Estado Islâmico» financia o «Estado Islâmico». Toda esta acção dos EUA e seus aliados combina o discurso gongórico e simbólico do manto diáfano com o apoio financeiro, militar e logístico da nudez fria da realidade.

As profundas desigualdades económico-sociais internacionais e nacionais, atingindo de forma vincada as minorias éticas nas sociedades desenvolvidas, num quadro de acelerada modernização com rupturas intempestivas da tradição, criam condições impulsionadoras para o radicalismo terrorista. A falsa identificação da liberdade com a possibilidade de escolha enfraquece a responsabilidade pelos outros: “a verdadeira liberdade se inicia com a noção de que as escolhas individuais se formam em permanente negociação com as forças externas; a liberdade é (…) medida pelo nível de controlo que conseguimos conquistar sobre essas forças que, de outro modo nos controlariam” (Habermas).

Nenhuma destas considerações desculpabiliza minimamente a natureza criminosa e violadora da dignidade humana, mas pode ajudar a percebermos melhor a realidade actual, a sua complexidade e a diversidade de mudanças de rumo que são necessárias se pretendermos solucionar estruturalmente o problema.

3. E todas as alianças ignóbeis anteriormente referenciadas têm um denominador comum: a dependência das economias desenvolvidas em relação aos combustíveis fósseis, do petróleo e do gás.

E essa é a principal motivação desta reflexão e dúvidas que aqui vos deixo. Já numa crónica anterior chamamos a atenção para o petróleo extraído na região controlada pelo «Estado Islâmico». Colocámos então a hipótese que as quebras no preço de mercado do petróleo também tenham sido causadas, para além de manobras concorrenciais politicamente definidas por objectivos estratégicos, pelo actual mercado negro do ouro negro. A explicação oficial da possibilidade de obtenção de um produto similar a partir do xisto betuminoso não parece concludente pelos mais elevados custos de produtos e graves impactos ambientais.

Os actos terroristas voltaram a chamar a atenção para o problema quando se informa que “a maioria das receitas [do «Estado Islâmico»] resulta do negócio do petróleo, várias fontes apontam para uma receita diária de 1,5 a 2 milhões de dólares” (Expresso). Formulamos a hipótese de que este valor esteja subestimado pois tal corresponderia a cerca de oitenta mil barris por dia, admitindo que no mercado paralelo o preço seja metade do oficial. Recorde-se que a produção do Iraque e da Síria valia, há dois anos, três milhões de barris por dia.

A questão que se coloca é: porque é que os Estados não impõem sanções económicas às empresas petrolíferas que estão a utilizar o petróleo daquele pseudo-Estado erigido pelas armas? Porque não querem ou porque não podem? Porque é que esta medida não faz parte do vocabulário político do combate ao terrorismo?