Nuno Moreira, Visão on line,
Seriam verdadeiros falhanços se a auditoria tradicional tivesse como responsabilidade primária a deteção da fraude
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O caso BES está a ter seguramente um mérito...
Nunca se falou tanto Auditoria Forense como agora. Aproveitando o espírito Natalício, Aleluia, Aleluia!!
Finalmente começa a perceber-se que a auditoria tradicional, quando confrontada com situações de risco de fraude, tem limitações que decorrem dos seus próprios pressupostos e metodologia. E, só com um “instrumento complementar”, pode ver a sua eficácia significamente aumentada quando, no horizonte está o fenómeno da fraude, potencial ou efetivo.
O próprio Banco de Portugal afirmou recentemente que "As auditorias forenses são um instrumento complementar de supervisão que visam confirmar o cumprimento rigoroso das matérias que se inscrevam nas competências do Banco de Portugal",
Tenho vindo a defender há algum tempo que, sempre que estiver em causa um trabalho de auditoria (auditor externo e/ou supervisor) a desenvolver, nas denominadas Entidades de Interesse Público, a equipa de auditoria deveria obrigatoriamente integrar cumulativamente um especialista em fraude, devidamente reconhecido e certificado (Certified Fraud Examiner ou Forensic Accountant). A auditoria tradicional já está devidamente “autorizada” e recomendada a fazê-lo, desde logo no seu próprio normativo, a integrar nas suas equipas, sempre que aplicável, estes especialistas (Forensics). No essencial, o trabalho desenvolvido por estes especialistas representa uma extensão ou complemento do trabalho de auditoria, colmatando significativamente as limitações que uma auditoria "tradicional" apresenta perante situações de risco de fraude. Esta opção, seria um elemento-chave para aumentar a eficácia de uma auditoria nestas entidades e, consequentemente, restabelecer a confiança nos e dos mercados, reduzindo também o gap de expectativas entre os diferentes stakeholders.
Entre a auditoria externa /revisão de contas tradicional e uma auditoria forense existem diferenças muito relevantes, nomeadamente, no perfil e competências exigidos aos seus profissionais, no objeto e objetivo do trabalho, na metodologia usada, pressupostos, etc.
Vejamos o seguinte quadro:
Auditoria Externa /Revisão Oficial de Contas |
Auditoria “Forense” |
|
Objectivo |
Opinião sobre o relato financeiro, aferindo acerca da sua “imagem verdadeira e apropriada” e Sistema de Controlo Interno de suporte |
Provar a ocorrência ou não de uma fraude e, em caso afirmativo, identificar os perpetradores |
Abordagem/Metodologia |
Governada pela “materialidade”, técnicas de “amostragem” e segurança razoável |
Exame a 100% de tudo o que possa suportar a investigação da fraude |
Âmbito |
Relato Financeiro / “Contas” |
Relato Financeiro, Apropriação Indevida de Ativos e Corrupção |
Relação |
Não contraditória |
Contraditória |
Presunção | Ceticismo profissional | Prova |
Produto Final | Relatório / Opinião sobre o relato financeiro e Sistema de Controlo Interno de suporte | Relatório de Investigação, preparado no sentido de poder servir de prova (criminal) em tribunal |
Fonte: Adaptado de Rittenberg, L., Johnstone, K., & Gramling, A. (2012). Auditing 8th. Cengage Learning.
Olhando aos escândalos que têm vindo a suceder-se, quer a nível nacional quer a nível internacional, tendo presente o resumo das principais diferenças apresentadas no quadro anterior, será mais acertado falarmos em "falhanços" da função de auditoria ou têm sido situações onde a auditoria "tradicional", pela sua própria vocação e orientação, não chegou lá? Parece mais correto optar pela segunda hipótese.
Seriam verdadeiros falhanços se a auditoria tradicional tivesse como responsabilidade primária a deteção da fraude e se estivesse vocacionada e orientada para este objetivo, o que não acontece.
É inequívoco que, escândalo após escândalo, a pressão sobre a auditoria tem vindo a aumentar e que tem estado sob escrutínio há já algum tempo. Em 2010, o livro verde que encetou uma verdadeira reforma da função de auditoria no mercado europeu referia:
"É chegada a altura de avaliar o real desempenho desse mandato social"
(GREEN PAPER - Audit Policy: Lessons from the Crisis)
Ou seja, entende-se que a auditoria tem um mandato atribuído pela sociedade, estando cada vez mais difícil dissociar este mandato do fenómeno da fraude. A auditoria, desde logo no seu normativo não assume esta responsabilidade (fraude) mas a sociedade gostaria ( e muito!) que a auditoria a assumisse.
No mesmo livro verde de 2010, no âmbito do referido "Papel do Auditor", também é assumido expressamente que a auditoria tem limitações e que as partes interessadas poderão não ter conhecimento delas, a saber, a materialidade, o uso de técnicas de amostragem e a segurança razoável que alicerça a sua opinião.
Havendo um gap de expetactivas entre as partes interessadas no produto “auditoria” e entre o que a auditoria tradicional efetivamente proporciona, em termos de produto e objetivo final, parece incontornável optar, em determinadas realidades e perante um risco de fraude, por equipas de auditoria mais robustas e multidisciplinares. Isto só pode ser conseguido complementando a auditoria tradicional com a auditoria forense!
No âmbito da reforma do mercado europeu de auditoria que tem estado em curso e que o referido livro verde de 2010 representou o ponto de partida, foram feitas as seguintes publicações em 2014, no Jornal Oficial da União Europeia:
- Regulamento (UE) n.º 537/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014, relativo aos requisitos específicos para a revisão legal de contas das entidades de interesse público e que revoga a Decisão 2008/909/CE da Comissão;
- Diretiva 2014/56/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014, que altera a Diretiva 2006/43/CE relativa à revisão legal das contas anuais e consolidadas.
Apesar de o conteúdo destas publicações representar um importante avanço no que respeita à função da auditoria e ao papel do auditor, faltam ainda avanços claros no que se refere a uma maior integração da filosofia da auditoria forense na auditoria tradicional, perspetivando uma efetiva mitigação do risco de fraude nas organizações; sobretudo, quando o risco de efeitos sistémicos associados é real.
Contudo, também é verdade que a auditoria tradicional só tem a ganhar com a auditoria forense se esta estiver num estado de maturidade interessante.
Em Portugal, infelizmente, a auditoria forense tem ainda um significativo caminho a percorrer; desde a sua integração como disciplina nos próprios sistemas de ensino até ao seu reconhecimento oficial, regulamentação e certificação profissional.
Por outro lado, estando a auditoria forense ainda na sua infância em Portugal, também não é menos verdade que o caso BES acabou por lhe dar “vitaminas” essenciais a um crescimento futuro que se deseja muito saudável e sustentável!