Carlos Pimenta, Visão on line,

1. É preciso agradar aos mercados! É das frases mais vendidas, embrulhadas em papel de rebuçados. Soa bem, e parece doce.
Se são os mercados que emprestam dinheiro aos Estados, se eles estão a usufruir de uma taxa de juro elevada, se se diz que aquela mede o risco do empréstimo, se os mercados foram obrigados a ter esta nobre função de permitir que todos nós vivamos -- e até possamos alimentar-nos e fazer sexo porque dessa forma organizaram o capitalismo altamente financiarizado e altamente desregulado pelos próprios Estados -- porque não sermos bonzinhos e mostrarmos que somos bem comportados?
E será isso que os mercados esperaram que façamos? Como qualquer padrasto deseja que o enteado se porte bem, que obedeça às suas ordens, que não discuta o seu poder paternal, que faça os deveres de casa que ele e os professores exigem.
Mas esta é apenas a parte simbólica. O principal está na economia, naquele florescente raio de Zeus que se chama rentabilidade do capital.
2. No económico é que está o busílis. Para nós, sócio-dependentes, mas também para os mercados.
Estes estão cansados de procurar novas fontes de riqueza.
Dantes era a exploração do trabalho alheio exigindo-lhes doze ou quinze horas diárias de labor. Depois porque a dignidade humana também existe e aqueles que trabalham também consomem, viraram-se para expropriação das matérias-primas de outros países colonizados ou próximos desse estatuto. Porque estes povos também construíram e exigiram a sua dignidade tiveram que se virar, durante algumas décadas gloriosas para os mercados financeiros.
Estas catedrais de Zeus, permitiu-lhes apropriarem-se dos fundos de pensões, da riqueza que nunca foi produzida, especular sem qualquer regulação, ocupar postos destacados no aparelho de Estado, gerar o maior fosso de sempre na distribuição do rendimento.
Mas não é que se lhes atravessou no caminho a crise, essa manifestação inoportuna das incongruências do sistema que eles próprios criaram? Então especulou-se com o petróleo, com os produtos alimentares -- também para isso é que há os mercados de futuros! -- e, quando já parecia que não havia mais para onde se virarem surgiu, pela ordem natural da vida, os empréstimos aos Estados. É verdade, pela ordem natural da vida, a partir do momento em que os bancos especuladores mal geridos, roubados, têm que ser salvos pelos Estados, isto é, que o capital bancário pode fazer todas as tropelias porque se estiverem para falir serão salvos pelo dinheiro dos cidadãos, mesmo dos que nem têm dinheiro para pôr no banco, tudo parece salvo na rentabilidade do capital. Como diz William Black "a melhor maneira de roubar um banco é possuir um".
As dívidas soberanas são o último (ultimo porque actual, porque é sempre possível encontrar novas soluções nem que os pobres tenham todos que morrer) reduto destes "pobres" mercados que tanto se têm esforçado para agradar a Zeus.
3. Retomemos o fio da meada depois deste devaneio histórico. O que é que os mercados podem esperar dos Estados para garantir a rentabilidade do capital? Em primeiro lugar que a dívida seja paga. E para tal é importante que se reduzam as despesas, que o dinheiro emprestado tenha aplicações que deem uma rentabilidade superior aos juros que têm que pagar, que todo o dinheiro que circule no país seja bem empregue, não seja desviado.
Isso mesmo, que não seja desviado para cofres particulares, para negócios ilícitos, para jogos que não criam riqueza.
É verdade a corrupção, todos os esquemas de fraude, o branqueamento de capitais, a fuga ao fisco, a economia paralela, legal ou ilegal, são elementos perigosos para a dita rentabilidade do capital. Os exemplos são conhecidos de todos.
Logo agradar aos mercados parece passar por combater a corrupção, atenuar a economia paralela, castigar severa e exemplarmente todos os traficantes de vilania encoberta, actuando sozinhos (o que é raro) ou inseridos em redes criminosas internacionais.
Eis também o que deveria ser feito para agradar aos mercados.
4. É lógico, mas parece não ter nada a ver com a realidade que vivemos: a parte da economia paralela associada à fuga ao fisco aproxima-se dos 25% do produto nacional, mas as medidas tomadas pelo governo tendem a agravá-la; o acentuar das desigualdades sociais que se tem praticado pode favorecer a economia ilegal; a corrupção continua a aumentar, numa tendência que já vem dos anos mais recentes, e permite-se que corruptos comprovados andem à solta e ocupem cargos públicos. A legislação existente é frequentemente mais permissiva que repressiva da fraude.
5. O que está errado no que dissemos? Porque é que nunca se fala em combater a corrupção para agradar aos mercados? Porque é que se amplia a economia paralela em vez de a minorar? Porque é que não se reprime o branqueamento de capitais e se esquece as grandes fraudes fiscais desde que sejam pagas? Porque não se tomam medidas firmes contra os offshores?
Deixem-me lançar um palpite. Porque os próprios mercados, máscara do capital financeiro com rostos de instituições e pessoas, se alimentam de todas essas vilanias. Se os actores dos mercados não tivessem praticado tantos crimes, com o Estado contemplativo a virar as costas para não ver, se não fugissem tanto aos impostos, muita da actual situação não seria vivida.
6. Como diz Gayraud (A Grande Fraude: crime, subprime e crises financeiras) "o mau capitalismo destrói o bom capitalismo; os maus capitalistas expulsam os bons capitalistas No curto prazo o «mau» é sempre mais rentável, pelo menos para os seus conceptores. A médio prazo é sempre destrutiva do interesse público. As fraudes podem influenciar significativamente o funcionamento dos mercados“
E porque não terminar recordando um presidente dos Estados Unidos da América, durante décadas amado e que hoje poderá ser considerado um perigoso elemento de uma seita de esquerda? Dizia Roosevelt em 1936, após à grande crise de 1929/33: "Agora sabemos que é tão perigoso ser governado pelo dinheiro organizado como pelas máfias organizadas"