Pedro Santos Moura, Visão on line,
O modelo conceptual mais conhecido para explicar a problemática da fraude é o Triângulo de Fraude. Este modelo assenta em três vectores, e indica que a prática de fraude é mais provável quando há um Motivo para perpetuar o acto, aliado a níveis de controlo e supervisão deficientes, o que gera uma Oportunidade, e colmatado pela capacidade de Racionalização do prevaricador em relação ao acto praticado (que geralmente é a base para comportamentos reincidentes). Este modelo é complementado por alguns autores (1) com um quarto pilar: a Capacidade auto-percebida pelo prevaricador para praticar o acto fraudulento, o que muda a geometria do modelo de um triângulo para um diamante (uma imagem sugestiva para alguns).
O combate a fraude passa, geralmente, por atacar cada um destes pilares do modelo, por forma a reduzir a probabilidade global de ocorrência de fraude.
Considero, no entanto, que há um elemento muitas vezes negligenciado, com uma influência preponderante: a Cultura.
É imediato que o modelo conceptual, com os seus três ou quatro pilares, está embebido num caldo cultural em que os vários agentes (pessoas) se movimentam. Óbvio também será que a mudança deste caldo é tarefa que assusta. Mas que urge, especialmente nos tempos que correm.
A fraude, já aqui o escrevi anteriormente, não passa somente pelo empossamento indevido de bens ou serviços por parte de um prevaricador em prejuízo de uma empresa, um individuo ou mesmo um Estado. É algo que causa um forte impacto na vida de cada um dos cidadãos, não só a nível económico, mas também a nível social. Tentei mesmo aqui cunhar um termo (auto-fraude) que pretendia levantar as consciências para a forma como o futuro de cada um é, muitas vezes, comprometido pelos seus actos presentes.
A fraude é uma falência ética, em toda a linha. É um fruto de consciências sobre-individualizadas, sobretudo interessadas com o seu bem-estar imediato e superlativo, filhas de uma linha de pensamento que privilegia a ganância, a dissimulação e a desresponsabilização em relação a tudo o que não seja o seu próprio umbigo.
O caldo cultural a que chegámos (e que bem se reflecte na sempiterna crise) é de um afastamento fatal entre o indivíduo e a Res Publica, de uma separação mortífera entre a pessoa e a sociedade, de um encolher atroz de ombros em relação a tudo o que não nos diga directamente respeito. Os cidadãos culpam o Estado e as Empresas pela situação a que se chegou (o vulgo ‘gatunos’); o Estado e as Empresas culpam as pessoas pela sua irracionalidade, incompetência e incapacidade em gerirem as suas vidas. Somos uma sociedade de descontinuidades entre os seus vários elementos constituintes, de incapacidade comunicativa e sinérgica, com uma rigidez, uma falta de capacidade orgânica bem patente no dia a dia.
E é, parece-me, este o caldo cultural certo para a prática da fraude (repito, não só a ‘fraude tradicional’), de todos para todos. Até nada mais haver que defraudar.
Pode parecer um trabalho de Hércules, mas é necessário alterar a Cultura. E a Cultura passa pela ética, de pessoas, de empresas, do Estado. Das pequenas às grandes coisas. Do deixar de compactuar com os emplastros que alastram pelas empresas e pelo Estado a minar qualquer possibilidade de produtividade; do parar de consumir estupidamente como se fora um ritual religioso; do deixar de achar graça ao chico-esperto que consegue engrolar o Fisco; de se falar quando se discorda de algo, de se falar quando se tem uma ideia, sem medo de represálias; de se ousar ser solidário, verdadeiramente solidário, com quem precisa; de se ligar mais ao que realmente importa na vida e não ter como profissão ‘Estou Ocupado’; de se responsabilizar os trabalhadores, dando-lhes condições e autonomia para crescerem, premiando o mérito e penalizando a mediocridade; de as empresas se concentrarem mais em produzir valor acrescentado através das suas especialidades e menos em garantirem dividendos para os accionistas; de se investir a sério em formação, não como uma ‘prenda para calar’ mas como um factor essencial para o desenvolvimento de competências e valor; de parar de olhar para a realidade como uma luta do ‘salve-se’ quem puder, do curto prazo, e de começar a pensar estrategicamente e com uma visão de longo prazo; de deixarmos de ter memória curta, e de justificarmos continuamente as nossas acções (ou não acções) através do apagamento progressivo e selectivo do passado; de pensarmos e assumirmos que as nossas acções têm um impacto real no futuro, no nosso e no dos nossos filhos.
É na Cultura, acredito, que está a real chave para uma verdadeira mitigação, sustentada, não só da fraude, mas também da crise que atravessamos. Mais que económica, esta crise é cultural. A economia capitalista sem uma cultura adequada sobre a qual se sustente há-de ser sempre uma montanha russa, com tendência para se transformar em roleta russa.
É, portanto, na Cultura, que se devem enfocar os maiores esforços no combate a fraude, ao nível das empresas e do Estado, mas sobretudo ao nível de cada um de nós (e daqueles que nos rodeiam). Caso contrário, estaremos sempre a correr atrás do prejuízo.