António João Maia, Visão on line,

Há poucas semanas, a propósito das cada vez mais enfadonhas e desfasadas entrevistas realizadas invariavelmente às mesmas figuras acerca do 25 de abril e do projecto que lhe estava associado – de que destaco a ideia de liberdade e a procura de melhores índices de desenvolvimento social para o povo português – alguém referia, depois de evidenciar as muitas melhorias verificadas por exemplo ao nível da prestação de cuidados de saúde ou mesmo do incremento dos índices médios de escolaridade da população, que pelo menos numa vertente falta ainda fazer praticamente tudo. Referia-se concretamente à área da Justiça.
No essencial dizia que o modelo, a lógica e sobretudo a cultura do seu funcionamento se têm mantido praticamente inalterados desde há muitas décadas, e que este factor se tem traduzido num forte contributo para se ir afastando e desfasando cada vez mais da realidade dos problemas da sociedade e dos cidadãos. Neste ponto invocou muito concretamente a forma como o sistema de Justiça aparentemente não tem conseguido tratar de forma conveniente o problema da corrupção, designadamente da grande corrupção, ou da corrupção política, ligada fundamentalmente aos grandes negócios do Estado e às alegadas relações com o financiamento dos partidos políticos.
Acrescentava, com alguma amargura e um resignado encolher de ombros, que a sente particularmente lesta e forte a condenar os mais fracos e indefesos pela prática de ilícitos comuns – que acabam por ser apontados como os exemplos do seu funcionamento – mas que ao mesmo tempo aparenta ser muito lenta, cuidadosa e eventualmente fraca a lidar com os casos que envolvem os mais fortes e poderosos da sociedade.
Ainda a este propósito e por suposta incapacidade de sistema de Justiça, salientava a inexistência nas últimas décadas de qualquer condenação por práticas de corrupção política, quando, em paralelo e de forma sistemática, os media têm noticiado sucessivos casos de suspeição relativamente a alegadas situações ilícitas com contornos daquela natureza, que até têm dado origem a processos de investigação, também eles muito mediatizados, mas invariavelmente arquivados muitos meses depois por inexistência de provas, ou em absolvições, nos poucos casos que têm chegado a julgamento. Concluiu a entrevista a afirmar que para a área da Justiça falta cumprir abril!
Não sei, nem esse é o propósito destas linhas – até porque julgo não existirem em Portugal dados objectivos que, com o mínimo de isenção e rigor, permitam com solidez saber se o sistema de justiça funciona bem ou mal, se está actualizado ou desactualizado e sobretudo se funciona em concordância ou discordância com o sentir, com as necessidades e com as expectativas dos cidadãos. Presumo mesmo – só esta perspectiva me parece poder ser admitida – que todas as decisões judiciais sejam justas, na medida em que estejam – como é suposto – concordantes com o quadro legal existente. Neste sentido, o sistema, com os seus eventuais desfasamentos sobre a realidade, há-de condenar quem deva ser efectivamente condenado e absolver aqueles que não tenham praticado nenhum ilícito, ou relativamente aos quais não tenham sido colhidos indícios suficientemente fortes de o terem feito.
Porém não é menos verdade, como todos também sabemos, que os media continuam insistentes na divulgação de notícias de novos e de velhos casos suspeitos, produzindo um discurso, por vezes ensurdecedor, que nos vai empurrando inevitavelmente a todos para essa percepção da existência de muitas situações de grande corrupção e de um forte sentimento de impunidade relativamente a elas.
Neste quadro, e este é verdadeiramente o ponto onde pretendo chegar, julgo podermos equacionar a questão em função de duas hipóteses complementares:
- Ou tais factos noticiados não correspondem efectivamente a nenhum crime, e neste caso não passam de uma espécie de ciladas montadas de forma deliberada e com propósitos obscuros apenas para destruir o bom-nome e a reputação de pessoas sérias, como elas próprias muito a propósito sentem necessidade de o afirmar na sua defesa pública;
- Ou, ao contrário, correspondem a tais ilícitos, mas o sistema de Justiça – há que admiti-lo – não consegue fazer o seu tratamento devido, ou seja não consegue aceder aos indícios e às provas que demonstram a sua ocorrência e, muito simplesmente, acaba por os deixar escapar;
Nesta dicotomia insolúvel, que delimita o problema nos seus extremos, uma coisa parece certa: Acabamos por ser todos vítimas desta situação, que é como quem diz, acabamos por ser todos vítimas da corrupção política.
Se aceitarmos a primeira hipóteses como válida, os visados e perseguidos por tais notícias infames e caluniosas são vítimas de verdadeiras cabalas e da baixeza moral de quem urde a alimenta todas essas estórias e mentiras, como eles próprios sentem necessidade de o afirmar insistentemente.
Na validade da segunda hipótese, são os restantes cidadãos as vítimas da corrupção política, pois se por um lado o sistema judicial que pagam não está preparado para detectar, comprovar e punir os autores destas práticas, por outro lado, a ocorrência destes actos é causadora de enormes danos financeiros também custeados por toda a sociedade.
Assim, para concluir, enquanto não for possível criar e implementar mecanismos que permitam dissipar esta espécie de dilema, todos nos vamos sentindo vítimas do problema. Os primeiros, quando lhes toca, invocam esse estado de vitimização na praça pública, onde sentem ser socialmente condenados. Os segundos porque cada vez mais acreditam, muito por força do discurso mediático que os rodeia, que as decisões judiciais relativamente a cada um dos casos publicitados tendem a ser uma espécie de embustes, que apenas têm o efeito de agravar a dimensão do problema da corrupção, dado o sentimento de impunidade que vão induzindo e incrementando.
Na senda do entrevistado que suscitou esta reflexão, os dados conhecidos do problema evidenciam que o controlo da corrupção em Portugal parece estar ainda longe de cumprir o ideal de abril…